A cultura da educação
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno 3, página 3

Quinta-feira, 20 de Agosto de 2009 – Fortaleza, Ceará, Brasil

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Cheguei na garagem do prédio onde moro e um garoto de aproximadamente dezoito anos acabara de acionar os dois elevadores. Desci do carro e ao me aproximar do jovem universitário, fui imediatamente abordado para saber em qual dos dois elevadores eu iria, já que ambos estavam disponíveis. Sugeri que fôssemos no mesmo, pois, assim, economizaríamos energia. Ele perguntou para qual andar eu ia. Ao descobrir que o dele estava mais acima, indagou: “E eu vou pagar?”. Tive dificuldade de entender, mas infelizmente compreendi que ele não estava disposto a esperar o tempo que o elevador levaria para me deixar no andar em que eu iria descer.

Fiz de conta que não entendi e entrei no mesmo elevador que ele. Houve um clima de constrangimento, causado pela intolerância ao tempo de espera. Talvez ele quizesse subir apenas com um clique de mouse e o tal do elevador tem a velocidade da vida real. Além de ter que passar por vários andares, antes de chegar ao dele, ainda aparecia um sujeito como eu para dar uma parada no caminho. E o pior, dentro daquela caixa de subir e descer pessoas não pega telefone celular. O rapaz ficou inquieto, suspirou, fez esforço explícito de respirar fundo, até que chegou ao piso em que desembarquei e daí para frente não sei o que se passou com ele.

Entretanto, aquela rápida convivência aguçou em mim um conjunto de impressões que tenho tido sobre o tanto que a educação do estar ligado permanentemente, pregada pela ideologia da conectividade alienante, tem modelado as nossas relações. O controle da educação, embora ela pertença ao ambiente social, não é coisa nova. Aliás, a educação como a conhecemos há muito deixou de se limitar ao ensino de saberes das culturas e de representar um campo de possibilidades para o desenvolvimento integral das pessoas. Educar torna-se cada vez mais uma ação indutora de hábitos de consumo, que convergem para a definição de traços de personalidade social.

A cultura, como expressão das atividades e manifestações da organicidade linguistica e comportamental, que formam a rede de significados dos grupos sociais e seus modos de organização, poderia contar mais com o instrumental tecnológico disponível, para o compartilhamento enriquecedor da maneira de tocar a vida em formas e crenças dos grupos sociais. Acontece que a tecnologia traz em si as incubadoras dos modelos culturais idealizados pelos seus patrocinadores, produzindo uma interferência educativa de alta performance. Não é à toa que em duas décadas a popularização da internet tem servido mais para homogeneizar comportamentos do que a própria televisão em meio século.

Na juventude esse efeito homogeneizante é escancarado. A pasteurização das atitudes e dos significados (ou da ausência deles) é escandalosa. A pressa para ir a lugar algum não dá qualquer chance de contemplação, de aprofundamento de nada. A mente, constantemente subordinada a impulsos de instantaneidade, obriga uma solidão em massa, resultante do estado de busca e de disponibilidade que, paradoxalmente, isola as pessoas, enquanto parece aglutiná-las. A derrota da cultura para a educação tem sido um dos fatores mais graves no mundo contemporâneo. Vivemos um falso esplendor da cultura da educação, em que a influência dos mais variados equipamentos educacionais insistem em ser “doadoras” de cultura.

Sou defensor da ideia de que é a cultura que deve dizer qual a educação que deseja. Acredito no que, recorrendo a uma das extensões do mito do Saci, chamo de perna invisível da cultura. De Paulo Freire (1921 – 1997) a Antônio Jáder Pereira dos Santos, o Dim, dos brinquedos e pinturas inquietas, existe uma movimentação contínua das forças misteriosas da vivência humana na invenção da vida, propondo uma educação aliada da cultura. Paulo Freire acreditava na liberrtação dos determinismos históricos e tecnológicos, por meio da comunicação fundada nos sentimentos culturais. Dim, resume tudo isso ao dizer que “a vida é todo tempo”, que não devemos ser prisioneiros do passado, do presente nem do futuro.

O caso do rapaz do elevador e sua impaciência diante de uma simples parada para alguém descer chamou a minha atenção ao quanto estamos mediatizados pela natureza virtual do acesso, o que tira qualquer sentido de convivência. Em uma de suas tiras de quadrinhos,  intitulada “amigas no celular” (FSP, 16/2/2009), André Dahmer sintetiza bem essa questão: duas amigas se ligam insistentemente enquanto se preparam para um encontro. A primeira avisa que sairá em dez minutos. Em seguida, a outra liga para pedir uma opinião sobre o que vestir. Toca o celular e uma diz que já está no estacionamento. Toca novamente e a mesma diz que já está na praça de alimentação e pergunta ansiosa pela outra. O encontro acontece com um repentino abaço, pois os telefones das duas tocam: “Pois é, Rafa. Sexta não dá”, comenta uma; “Quer saber, Carla? Ele não merece você”, argumenta a outra. Quer dizer, apesar de sentadas à mesma mesa, na verdade elas não se encontraram.

Por conta de viver dizendo que cultura é mais importante do que educação, um dia desses um amigo meu me confortou com o relato de uma situação que ele presenciou na avenida Beira-mar em Fortaleza, dizendo que estava ficando quase convencido da minha tese. Contou que estava caminhando no calçadão quando percebeu que um homem com cara de bem-educado, de bem formado e de bem informado, desviara de um cone de delimitação da área de cooper, que havia caído. Em seguida, viu dois pescadores, que tinham acabado de deixar suas jangadas no Mucuripe, colocarem o mesmo cone de pé, facilitando a passagem das pessoas. Adorei essa história porque quem tomou a atitude de cuidar do problema foi quem aparentemente não tinha nada a ver com a corrida, o que implica dizer que o alheamento e o compromisso têm raízes mais profundas do que imaginamos.

Ao tomar a atitude reflexiva de levantar o cone e de colocá-lo no lugar onde teria serventia aos corredores da beira-mar, embora não fosse um deles, o pescador revela a importância da sua cultura, como ser humano de vida comunitária e de gesto solidário, independente do seu grau de instrução. Diferentemente do garoto que demonstrou impaciência em ter que esperar uma simples parada do elevador, e diferentemente do homem que saltou com indiferença o cone na avenida, colocado para proteger a todos os que praticam cooper por ali, inclusive ele. Não sei se para melhorar ou para piorar a compreensão do que estou querendo exprimir, é como se, por analogia, eu dissesse que Lula faz um bom governo porque tem cultura e Fernando Henrique quase acaba com o Brasil porque tem apenas uma excelente educação.

Na rua em que moro aconteceu na semana passada um triste episódio que traduz bem esse descompasso entre cutura e educação da cultura. Ao retornar do trabalho percebi que algo na rua me perturbava. Parei o carro e vi que estava faltando uma árvore. Estava lá o que restara do tronco, que as motosserras deixaram quase ao nível da calçada. Senti um vácuo doloroso e revoltante. Pensei comigo: “que merda, a gente sai para trabalhar e quando volta esses meliantes assassinaram uma bela árvore, provavelmente pagando de forma antecipada a multa para cometer o crime; multa essa recebida sem pudor pela prefeitura, que tem a responsabilidade de zelar pelo paisagismo urbano”. O pior é que a vida daquela árvore foi tirada violentamente em frente a uma clínica, que se supõe seja um estabelecimento dirigido por gente bem educada. Nessas horas, penso na cultura das pessoas que plantaram aquelas árvores para sombrear e refrescar a calçada do lado da sombra.