A escola e o limite dos pais
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno 3, página 3

Quinta-feira, 13 de Março de 2008 – Fortaleza, Ceará, Brasil

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O assunto que tenho para tratar no artigo de hoje é muito delicado. Delicado e urgente. Ocorreu na semana passada, quando a imprensa publicou o anúncio “Repúdio à violência no Colégio Santa Cecília”. A peça publicitária foi paga pelos pais de uma criança agredida por um colega de escola. Sabe-se que é muito difícil ficar sereno diante de um filho machucado por quem quer que seja. A situação pede solidariedade. Porém, o caminho escolhido pelos pais para pressionar a escola a expulsar o “infrator” foi tão desmedido que sufocou a significação do fato.

A escola não se intimidou e publicou também sua posição diante do ocorrido. Em anúncio intitulado “Colégio Santa Cecília: educação, fraternidade, valores e atitudes” defendeu sua opção por “medidas disciplinares cabíveis, num contexto permanente de formação pedagógica e humana”. Ao negar a imposição dos pais, quanto ao desligamento sumário do “agressor”, o colégio Santa Cecília evitou que se legitimasse o senso da escola como prestadora de serviço aos pais que podem pagar, reafirmando a função mais honrosa das instituições educacionais.

A duvidosa máxima mercantil de que “o cliente tem sempre razão” deturpa o entendimento de que o ser humano é uma “máquina” complexa de “pôr em funcionamento” e produz assimetrias estruturais que dificultam a visão da escola como espaço de cultura, de conhecimento, sociabilidade e de participação social, voltado às dimensões da dignidade das pessoas. No ambiente escolar, a tolerância deve ser um atributo fundamental à convivência e não um mero recurso social que tira direitos de quem a pratica.

O não, necessário, pronunciado pelo Colégio Santa Cecília reafirmou as regras básicas do sistema educativo, que não permitem aos pais de um estudante definir o “castigo” a ser aplicado ao filho de outro, seja em que circunstância for. A escola não se submeteu às ameaças nem temeu arranhões na sua imagem construída “ao longo de quase um século de atuação no Ceará”. Rejeitou a interferência e impôs limites aos pais em sua confusa postura de ambigüidade entre a indignação procedente e o exibicionismo cáustico.

Um dos maiores problemas enfrentados pela escola contemporânea é o sentido de prestadora de serviços a pais de crianças “terceirizadas”. Os pais terceirizadores costumam desenvolver paródias comerciais do ambiente escolar, como álibi à negligência que praticam com os filhos, e depois criticam a escola como se tivessem criticando esse álibi, por não entregar o produto “criança” encomendado. Esse é o grande embate da educação com as forças que consideram os equipamentos educacionais apenas pontos disciplinadores de condicionantes de determinados grupos interesse e de poder.

O incidente ocorrido com o Santa Cecília indica que a sociedade está se devendo uma reflexão acurada no que diz respeito a essa relação de serviço terceirizado imposta à escola. O melhor caminho para combater essa compreensão doentia da educação é exercitar a nossa mais sublime e mais poderosa força transformadora, que é a nossa capacidade de dialogar. Ao assumir a voz e a honra da instituição escolar e recorrer aos significados mais amplos e profundos relacionados à vida e à vida em sociedade, o colégio Santa Cecília demonstra que é possível superar a noção mórbida de que tudo pode ser comprado.

Observei o anúncio dos pais e o do colégio como quem observa a existência de uma fratura exposta de um grande problema do corpo social. Todos temos maior ou menor grau de agressividade no nosso mecanismo natural de defesa. Brigas entre irmãos, entre amigos, entre turmas de bairros e entre colegas de escola fazem parte do temperamento da nossa fibra na arte de crescer. O que fazer nos casos em que o exercício da agressividade se transforma em violência é um desafio educacional que chama toda a sociedade à grandeza, diante da situação de abandono em que se encontra a infância.

A convivência com a sensação de insegurança faz parte do cotidiano, tendo em vista que a banalização da violência restringe a nossa condição de percebê-la como se não houvesse nela a ação de sujeitos. Essa limitação do olhar resulta na criação de instrumentos de proteção, destinados a dar a ilusão de poder controlar o imprevisto. Ataca-se o efeito, enquanto deixamos as situações de violência se esconderem diante de nós, dentro dos condomínios, dos “shoppings centers”, nas ruas e nas escolas. Está em todo lugar porque se nutre de maus-tratos psicoafetivos, de ausência de relacionamento familiar e do sentimento de que a felicidade está no cinismo e na esperteza.

Grande parte da formação do caráter das novas gerações está entregue aos cuidados eletrônicos. O coronel Dave Grossman, psicólogo militar estadunidense, cuja função sempre foi a de capacitar as pessoas para matar, tem aduzido em conferências e artigos, que a erupção do vírus da violência é um fenômeno mundial que ele atribui ao excesso de crueldade presente nos programas de entretenimento infantil. Associar ato de violência com prazer é uma das maneiras de dessensibilizar o ser humano para que supere a aversão natural que têm em matar o próximo.

A equação macabra de Grossman coloca sinal de igualdade entre a criança largada ao sabor dos “games” de sangue e os soldados embrutecidos para a guerra. Para que ajam irracionalmente, ambos são ensinados a matar. Ele explica que a perda da individualidade na solidão frenética da brutalidade prepara as pessoas para a aceitação de um novo conjunto de valores, que abraça a destruição, a violência e a morte como uma forma de viver.

O condicionamento da nossa percepção nos impede, muitas vezes, de notar que distúrbios mórbidos distintos em sua forma podem se assemelhar em sua gravidade. Muitas pessoas se mostram atônitas diante das notícias dos meninos e meninas abusados nas guerras pelos territórios iranianos, colombianos, africanos, asiáticos, balcânicos e nas favelas das grandes cidades brasileiras. Mas poucos se dão conta de que os inúmeros compromissos diários sufocantes impostos às crianças urbanas, por uma “agenda executiva” na qual não sobra tempo para brincar, também causam indeléveis traumas físicos e psíquicos.

O que os pais do estudante agredido classificam como “mais um desses incompreensíveis atos de violência insana” é a prática da hostilidade como discurso da impotência, como resposta à insegurança e à infelicidade. O agressor neste caso é um fraco, que tem medo dos que estão à sua volta e tenta se afirmar no ambiente escolar praticando atos agressivos intencionais. A vida está cheia de conflitos, muitos deles inevitáveis. A solução de muitas dessas tensões não necessita passar pela definição de vencedor e vencido. O que parece mais delicado e complexo nessa situação é que, a despeito da revolta com a situação do filho, os pais possam ter partido para o grande anúncio apenas por se sentirem derrotados com a decisão da escola de não expulsar o acusado.