A falácia da Zona Azul
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno 3, página 3

Quinta-feira, 28 de Janeiro de 2010 – Fortaleza, Ceará, Brasil

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Mais do que pelas grandes promessas, a atuação dos governantes deve ser observada por suas pequenas decisões. São as pequenas decisões que refletem fielmente o conceito que o gestor público tem do território que administra. A volta do sistema de estacionamento rotativo Zona Azul em Fortaleza é uma dessas iniciativas pontuais que traduzem o comodismo e a visão conservadora de cidade que estão instalados nas cabeças dos responsáveis pela nossa engenharia de trânsito.

Por mais que os argumentos oficiais digam que estão recorrendo ao artifício da Zona Azul para melhor reordenar o trânsito nas áreas de saturação comercial, para organizar mais a circulação de veículos, para gerar rotatividade de vagas e disciplinar o espaço público, o que está ocorrendo de fato é uma demonstração da perda do sentido de polis na administração pública municipal.

A Zona Azul é uma saída conservadora, uma solução tão inapropriada quando a do rodízio por placas de pares e ímpares, que só serviu para aumentar a frota de veículos onde foi adotado, pois quem tinha um carro com placa par tratou de comprar outro, com placa ímpar. São iniciativas que têm efeito contrário, que agravam a desordem nos grandes centros urbanos, que deseducam as pessoas e geram desconfiança nas intenções do poder público.

É muito ruim ficar com a dúvida se uma iniciativa dessas tem mesmo o propósito de encontrar soluções para um trânsito cada vez mais caótico ou se pode ser resumida à cegueira de sanha arrecadadora. É muito ruim não saber se o gestor municipal está simplesmente limitado a ações de curto prazo, quando estamos precisando agir no presente, mas pensando no futuro.

A prefeitura deveria dar o exemplo para a população de que vale a pena pensar a cidade para se viver e não apenas para se dar bem. Faria isso com intervenções que priorizassem as pessoas, os grupos sociais e não a indústria automobilística e a si mesma com a cobrança por infrações e penalidades, já que, pelo que se diz, a venda de cartões está vinculada à cobertura dos serviços da empresa terceirizada para o serviço.

É preocupante esse tipo de intervenção, pois demonstra a fragilidade estratégica de quem está com a responsabilidade de cuidar do trânsito na cidade. É certo que a Zona Azul está legalmente protegida pelo Código Brasileiro de Trânsito, mas não se trata de ser legal ou ilegal. O que está em questão é o caráter retrógado da decisão.

Em muitos lugares onde tem Zona Azul, as pessoas estão procurando apoio da justiça para associar esse tipo de pagamento à responsabilidade pela segurança do veículo estacionado. Uma espécie de seguro. Afinal, quem estaciona em Zona Azul paga duas vezes, já que além do valor determinado no cartão, paga o valor estabelecido pelo flanelinha que “olha” o carro.

Entretanto, o problema não é de pagar ou não pagar; o problema não é se o cartão deve custar R$ 1,00 ou R$ 1,20 ou se comprando o bloco o desconto é maior ou menor; o problema não é se o tíquete deve ser comprado nas bancas de revistas, nas padarias, farmácias, por celular ou internet; o problema é, aí sim, o de ocupar ou não as ruas com estacionamento; de prejudicar ou não a fluidez do trânsito; de priorizar ou não o carro em detrimento das pessoas.

Quando o sistema de Zona Azul foi instituído em Fortaleza há três décadas, inspirado no modelo que estava em implantação na capital paulista, em busca de maior oferta de estacionamento metropolitano, a realidade do automóvel no mundo era outra, não havia ainda a urgência desesperadora por busca de soluções para a situação do carro, como praga urbana e como agente poluidor do planeta e promotor do aquecimento global.

Os parquímetros, nos quais se colocavam moedas ao estacionar nas calçadas, sempre existiram na vida das cidades grandes. A Zona Azul também cumpriu a sua fase. Foram bons enquanto faziam sentido. Hoje, as metrópoles estão partindo para a combinação de estacionamentos associados a terminais do metrô e para a disponibilização de edifícios-garagens que possam desobstruir as vias públicas.

Tomando como exemplo a avenida Beira-Mar, um dos logradouros-alvo da ação de Zona Azul em Fortaleza, nota-se que em nada a intervenção municipal vai contribuir para o aproveitamento do potencial poético e econômico do lugar. A Beira-Mar, que precisa ser elastecida criativamente para um uso mais pleno por parte da população e dos turistas, está engessada e continuará assim enquanto tiver estacionamento para automóveis nas suas laterais.

A principal avenida da cidade precisa do espaço que vem sendo utilizado para estacionamento, a fim de atender a uma demanda de ciclovias, movimentação de pedestres e “jardineiras” com passeios turísticos. Um cartão-postal não é apenas uma foto, mas o que ele representa em termos de vida cultural e de comportamento social. E a consciência de que não há lugar para parar veículos na avenida Beira-Mar é o mínimo que se poderia esperar da administração pública municipal.

Se a Zona Azul em si é uma capitulação ao passado da relação cidade-automóvel, um atestado de crença no triunfo do individual sobre o coletivo, aplicada à Beira-Mar ela vira uma prova de completa falta de entendimento do sentido do lugar. A Beira-Mar é o espaço do flâneur e não do flanelinha, um espaço de convívio, de zona verde da coletividade. Só deveria ser permitido circular na Beira-Mar os carros credenciados de moradores, táxis e transporte para traslado de turistas.

Ao implantar a Zona Azul, especialmente em logradouros como a avenida Beira-Mar, a prefeitura demonstra que está pensando pequeno, que não consegue sair da racionalidade cartesiana da sociedade do automóvel para a dinâmica cultural da sociedade cidadã. Caso contrário, já teria feito uma articulação com a iniciativa privada para a criação de estacionamentos em edifícios-garagens nas ruas paralelas e perpendiculares à Beira-Mar.

A decisão pela operação Zona Azul é uma iniciativa sem senso de urbe, que vem apenas somar-se a outros lamentáveis exemplos de pobreza administrativa numa cidade sem calçadas, onde o pedestre não tem vez, onde os semáforos são dispostos no outro lado da via, como um convite aos motoristas para que parem sobre a faixa de passagem de transeuntes, onde há semáforo sob viaduto por simples falta de passarela e uma rotatória com dois semáforos travando o trânsito, numa configuração sistêmica de urbanismo caótico.

O ideal seria que os órgãos municipais que tratam de questões complexas como essa do trânsito na sociedade pós-automóvel, tivessem a humildade de ouvir mais (se é que ouvem) as entidades da sociedade civil, como o IAB, a OAB, as universidades e as organizações sociais, para encontrar soluções que signifiquem passos à frente e não esse tipo de marcação de passo, sem sair do lugar, que se vê em “soluções” como a da Zona Azul.

Fortaleza tem construído prédios e mais prédios sem pensar em ruas e, pior, sem pensar que é uma cidade. Um gesto político transformador seria acabar com o estacionamento em toda calçada de rua com problema de fluidez. Mais do que de retorno financeiro, as ações da prefeitura deveriam estar associadas à mudança de hábito do fortalezense.

Fortaleza exige uma renovação de práticas urbanas que possam ir ao encontro das suas necessidades reais. Decisões como a da Zona Azul além de serem paliativas são transitórias e ruins. A cidade está precisando de ruas livres para o lazer do fortalezense, para a diversão de skatistas, ciclistas, cadeirantes, enfim, se não com cliclovias, pelo menos com ciclofaixas que evitem disputas de espaços de circulação e favoreçam a sociabilidade.