A fonte brasileira do construtivismo
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno 3, página 3

Sábado, 30 de Abril de 2005 – Fortaleza, Ceará, Brasil

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O que mais me chama a atenção na questão do construtivismo é que o seu maior exemplo prático, que é a obra infantil de Monteiro Lobato (1882 – 1948), tem base na intuição de uma utopia política e literária, enquanto a sua base teórica se origina nos incansáveis estudos de Jean Piaget (1896 – 1980) nos campos da biologia e da psicologia. Lobato criou e levou a efeito o Sítio do Picapau Amarelo com a intenção deliberada de motivar as crianças brasileiras a construírem um país que pudesse aflorar e crescer da própria curiosidade e da inventividade da infância. Piaget abriu caminhos no campo da inteligência infantil, investigando, por razões clínicas, o processo de raciocínio das crianças a partir das suas interações sensório-motoras com o ambiente. A essas duas matrizes, uma prática e outra teórica, some-se toda uma evolução de linhas de discussão e de experiências exitosas, referentes à forma de alfabetizar e ao respeito ao pensamento das crianças, e pode-se dizer que o construtivismo, mesmo ainda embaçado em sua compreensão geral, já conquistou lugar de destaque na espiral da educação.

Mas essa história vem de longe. No ano em que Piaget nasceu, Lobato, então com 14 anos, estava deixando Taubaté para ir estudar em São Paulo. O escritor brasileiro tinha passado a infância descobrindo o mundo através de brinquedos feitos de sabugo de milho, de casca de melancia, carrinho de lata e em tudo que se fazia necessário para inventar a diversão em uma cidade do interior. O psicólogo suíço poucos anos depois começava então a se divertir com a sua atração especial por moluscos, pássaros, enfim, por temas zoológicos.

O ano de 1921 é uma data que deveria ser adotada pelos adeptos do construtivismo como o marco fundador dessa filosofia. Naquele ano, Lobato, que já vinha despertando para a riqueza das suas lembranças de menino interiorano e tinha lançado a primeira versão do livro “A menina do narizinho arrebitado”, inicia sistematicamente a sua dedicação à literatura infantil, publicando livros em série, dentro de uma certa metodologia formada por elos de intuição. Foi também o ano em que Piaget começou suas observações de crianças brincando e em que passou a registrar detalhadamente o que elas diziam e faziam, para poder, assim, compreender o processo de raciocínio na infância. Ao fazer a caracterização da constituição das estruturas da inteligência ele foi construindo explicações de como algo menor é capaz de produzir algo maior, em estágios de desenvolvimento.

A publicação das histórias do Sítio do Picapau Amarelo ensejou aos leitores brasileiros um espaço de múltiplas possibilidades constituído de sofisticada riqueza literária e educativa, em seu aspecto mais essencial de acolhimento aos assuntos de interesse da infância. É, portanto, quase sem sentido deixar a obra de Monteiro Lobato fora das discussões sobre o construtivismo, como tem sido feito até agora. Perde-se com essa cegueira uma grande oportunidade de saber como é tudo isso em ação. Lobato organizou em quatro personas-chave o campo fértil para o exercício da imaginação no Sítio: Pedrinho e Narizinho, na condição de crianças abertas a tudo e sempre cheias de curiosidades; a Dona Benta, na representação do adulto disposto a aceitar e a motivar as invencionices das crianças; a Tia Nastácia, na posição de síntese da cultura popular; e a Emília que, sendo uma boneca, ficou com a liberdade de desconstruir a lógica das coisas sem dar muitas satisfações.

Na dinâmica do Sítio, Lobato dispôs as competências dessas personas a serviço do desenvolvimento infantil e em uma plataforma estética capaz de extrapolar as possibilidades dos cinco sentidos, gerando, conseqüentemente, uma construção sucessiva de novidades na formação das crianças, o que traduz objetivamente o modelo construtivista teorizado por Piaget. Ao passo que Piaget levantava dados para a montagem de seu eixo teórico, difundido amplamente a partir da publicação, em 1923, do livro “A linguagem e o pensamento da criança”. Lobato colocava em situação de exercício o que se pode ter de inteligência antecedendo à aquisição da linguagem e elevando a ação ao plano elementar da lógica. Piaget esmiuçava, por razões clínicas, hipóteses para a gênese das operações lógicas, do raciocínio casual e da apreciação moral.

Em sua obra infantil, Lobato, diferentemente de Piaget, não se moveu no sentido de procurar entender o que é conhecimento e como se dá o fenômeno da evolução qualitativa do saber. Ele tinha urgência em interferir na formação de um Brasil ideal. Por meio da valorização da infância sonhava em preparar o seu país para o futuro. Ao invés de incorrer na investigação científica, assumiu o risco de crer na intuição e traçou, em parceria com os seus personagens, uma filosofia educacional construtivista. A própria estrutura do Sítio do Picapau Amarelo foi toda concebida como ambiente de integração no qual tudo cabe e tudo se desenvolve com o combustível da curiosidade e da imaginação.

No cotidiano do Sítio há sempre um mundo novo e desconhecido a ser explorado, quer em caçadas de saci na mata fechada do Capoeirão dos Tucanos ou nos labirintos do Minotauro em distantes aventuras pela Grécia antiga. A evolução humana, as criaturas fantásticas, a ciência, a matemática, a física, a história, a geografia e a paz, passaram a contar com um segredo especial de brasilidade naquele lugar imaginário, de onde foi possível, inclusive, chegar à lua bem antes dos astronautas e antecipar a descoberta de petróleo no Brasil. A obra infantil de Lobato é um dínamo a acender os faróis da necessidade de tratar a criança em suas potencialidades de reflexão e criação de idéias, conduzindo o conhecimento, estágio após estágio, num crescente de complementaridades e interdependências.

Um dos momentos mais brilhantes de Piaget foi, na década de 1930, quando ele trabalhou as noções de quantidade e número. Na década seguinte, provavelmente sem saber dessa façanha, Lobato lançou a “Aritmética da Emília”, cheia de recursos teatrais e dos encantos da magia circense. Nessa historinha, os Algarismos Arábicos entram no picadeiro como um grupo de malabaristas puxados pelo número 1. O Visconde de Sabugosa explica que o número 1 é o pai de todos porque se não fosse ele os outros não existiriam: “Sem 1, por exemplo, não pode haver o 2, que é 1 mais 1; nem 3, que é 1 mais 1 mais 1” e segue assim até a Emília deduzir que os algarismos são “feixes de Uns”. E Lobato aproveita a irreverência da boneca de pano para avançar da noção de número para quantidade: “Os algarismos são varas. O 1 é uma varinha de pé. O 2 é um feixe de duas varinhas; o 3 é um feixe de 3 varinhas” e assim por diante.

Depois da apresentação dos números entra em cena a Dona Unidade e o Visconde esclarece a razão de, sem ela, não existir qualquer quantidade: “Quando alguém diz, cinco laranjas, está se referindo a uma quantidade de laranjas; e nessa quantidade uma laranja é a unidade”. Na sua vez de se apresentar, a própria Quantidade explica que serve “para indicar uma porção de qualquer coisa que possa ser contada, pesada ou medida. Se alguém pergunta que quantidade de gente há neste circo, eu conto as pessoas e respondo que há oito. Oito pessoas é uma Quantidade”. Foi nesse clima que Lobato desenvolveu a aplicação do construtivismo antes mesmo dele existir. Percebo, contudo, que muitos professores limitam seus esforços à tentativa de compreender as derivações da teoria (Epistemologia Genética) de Piaget, cuja origem não tem cunho educacional e cujo destino vai muito além da pedagogia.