A história de presente
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno 3, página 3

Sábado, 02 de Setembro de 2006 – Fortaleza, Ceará, Brasil

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Por conta do livro “Fortaleza – de dunas andantes a cidade banhada de sol” (Cortez Editora), tenho participado de conversas com crianças em muitas escolas públicas e privadas. O que mais me chama a atenção é o tanto que os atrai o fato desse livro tratar a cidade como sujeito. Quando explico que tudo o que está no livro foi a própria cidade que me contou, elas ficam ainda mais curiosas do que são. Digo que a cidade fala de um jeito esquisito e que se não estivermos atentos não conseguimos ver o que ela nos conta a todo instante. Esclareço que os sentidos da cidade são muitas vezes trocados. Os sons podem servir para a gente enxergar, assim como as imagens nos levam a escutar o que ela nos diz. Se passo em frente a um casarão antigo que está sendo demolido, mesmo a obra estando parada, ele grita: “Ei, você aí, estão me demolindo! Você não vai fazer nada?”. Da mesma forma que quando passo em frente a uma praça limpa e arborizada, escuto ela dizer: “Veja como estou sendo bem cuidada! Que tal vir passear em mim?”

Ao se depararem com a notícia desse diálogo silencioso que, percebendo ou não travamos com a cidade, a meninada desanda a contar o que escuta. Ouvi um garoto dizer que quando a árvore que existia perto do apartamento onde ele mora foi cortada e queimada, a fumaceira entrou até no quarto dele. Daí eu destaco o recado que a fumaça levou daquela árvore: “Estão me queimando, estão acabando comigo!” Mostro que quando isso acontece, a cidade dizendo que o verde está sendo destruído, que as sombras estão sendo eliminadas e que, por isso ficará mais quente e desconfortável. Procuro não esquecer de dizer também que a cidade fala por meio dos livros escritos por pessoas que vieram antes de nós e souberam escutá-la. Reforço que é pesquisando que podemos ampliar a compreensão do que a cidade nos diz.

A história é colocada nesses encontros como algo que está perto da gente, podendo ir e vir ao passado da mesma forma que se esgarça ao futuro. As crianças me dizem que já não agüentam mais livros que só começam com “Era uma vez…”. Nesta semana fui à escola municipal Mattos Dourado, ver de perto uma amostra do que as crianças da rede pública de ensino, presenteadas pela prefeita Luizianne Lins com o meu livro “Fortaleza”, estão fazendo com essa história. Fiquei impressionado com a constatação da vontade daqueles meninos e meninas de descobrirem a cidade, de brincar com ela, como quem brinca sentindo a alma do mais singelo carrinho de lata.

Emocionado, posso ter visto mais do que a realidade mostrou, entretanto, não guardo dúvidas de que ao terem a oportunidade de vislumbrar outros horizontes que não os espaços entrecortados das vielas do cotidiano, essas crianças abrem um parêntese na rotina escolar. Quando a Prefeitura de Fortaleza dá a história da cidade de presente está na verdade dando sinal de que algumas condições estão sendo criadas para que as crianças se realizem no mundo urbano, além do bairro e do tempo presente. Está propondo simbolicamente uma fuga das cabeças colonizadas de presentismo, causado pela infeliz noção da felicidade imediata e pela depreciação da coexistência social.

Todo livro é feito de muitas memórias que convergem para uma mesma história, a nossa história comum. Ao escrever um livro sobre Fortaleza, para crianças, deparei-me com muitos preconceitos e negações. Se não é fácil escapar das armadilhas do desrespeito aos nossos ancestrais, pode-se imaginar o quanto é árduo viver na situação de desigualdade e apartação em que vivemos. Fortaleza é uma cidade desmemorizada. Quem não pára o mínimo para notar essa amnésia ideológica pensa que ela existe apenas em sua forma absoluta e perversa de pujança especulativa. De um lado, uma enorme quantidade de apartamentos fechados, esperando lavagens de euros e dólares; e de outro, um injustificável déficit habitacional fora dos alcances da nossa moeda real.

Pensei nessas questões todas enquanto observava a festa da história, animada pelas educadoras e crianças daquela bem cuidada escola pública, dirigida pela professora Socorro Braga. Refleti sobre o quanto às vezes o que parece apenas um “presente” pode torna-se parte de um “futuro” que se antecipa. O envolvimento com a nossa história, por mais modesto que seja, é também um jeito de nos encorajaremos a resolver os graves problemas da atualidade.

Reunidas em torno da contação de histórias feita pela própria cidade, observei as crianças desconstruindo idéias-feitas e demonstrando necessidade de mais referências para poderem se orientar nos espaços urbanos. Não sei evidentemente o que terão perguntado a si mesmas, contudo, pude notar claramente que saber da cidade significa para elas pelo menos uma oportunidade de sair do bairro no ônibus da imaginação. De olhos acesos, com brilho de fazer inveja a qualquer farol azulado dos carros importados. Seguindo assim, quem sabe essa meninada vai acabar nos civilizando.

Digo isso como testemunho dos efeitos dessa incisiva ação democrática. Ao receberem a história de presente, aqueles meninos e aquelas meninas ficaram expostos ao tempo e à força da sua própria etiologia, pelo simples prazer da curiosidade. Com a história nas mãos pareciam folhear a garantia das suas liberdades individuais e direitos coletivos. Foi sentindo a própria história e afirmando virtudes que elas me passaram sua sede de conhecimento, não no sentido tradicional da educação, mas pela pulsão de estar participando de algo especial. Tive a sensação de que alguma coisa mágica mediou aquele encontro. Ao vê-las uma a uma com o seu livrinho e com o nome escrito na capa, percebi que muitas não se sentem mais anônimas.

Nas apresentações, vi crianças fora da faixa de escolaridade lendo aos titubeios, mas demonstrando orgulho, sem se deixar sufocar pela dificuldade de leitura. São muitas as formas com as quais podemos nos envolver com os livros e a que tem estação para o ônibus da imaginação talvez seja a mais esplêndida de todas elas. Tive essa certeza ao ver o Gerson da Silva, de dez anos, saltar no salão imitando um crustáceo: “Eu sou um caranguejo, ahá! Todos querem me comer, ahá! Tenho a carne muito saborosa, ahá! Mas eu ajudo todo mundo, muitas vidas e os meus colegas, ahá!”. Com essa bela alegoria ele traduziu seu entendimento da página do livro que conta a relação da cidade com o mangue. Teve a feliz ousadia de criar uma concepção própria com relevância do imaginativo. Que aprendizado maravilhoso! Que jeito expressivo de relevar contradições! Nada do que está posto é realmente para o resto da vida.