A inadiável festa do Saci
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno 3, página 3

Quinta-feira, 12 de Julho de 2007 – Fortaleza, Ceará, Brasil

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Correm aos pulos as manifestações por todo o Brasil em favor da instituição do dia 31 de outubro como o Dia do Saci. Qualquer semelhança com a data em que é comemorado o Halloween estadunidense terá sido mero propósito. A produção de um contradiscurso capaz de desorganizar o avanço dessa festa de falsas bruxas, introduzida nos países periféricos do consumismo global pelos cursos de inglês, conta com redemoinhos de “saciólogos” indignados.

2007 está sendo um grande ano na existência fabulosa do Saci. Não apenas do Saci apartado nos compêndios do folclore, mas principalmente do Saci que está ao nosso redor, cheio da vitalidade mestiça do imaginário brasileiro. No momento em que o País vive um processo de intensa vulnerabilidade das suas elites de modelo mental de colonizado, chamar o Saci é recorrer a um símbolo agregador de grande importância para a coesão do nosso desgastado tecido social, cultural e político.

O Saci é um dos nossos mais expressivos mitos. Ele sintetiza os elementos multiétnicos fundantes do Brasil. De origem nativa (o ser traquinas das matas), incorporou elementos das gentes africanas (a pele negra e uma perna mutilada pela escravidão) e européias (o gorro libertário adotado pelos republicanos, pós Revolução Francesa, que chegou com os imigrantes). No lugar de uma varinha de condão ele faz mágicas com um misterioso cachimbo que herdou dos rituais indígenas de paz e da sabedoria serena dos pretos-velhos.

Está tramitando no Instituto do Patrimônio Histórico Nacional, Iphan, o processo de registro do Saci como Bem Cultural de Natureza Imaterial do Brasil, por solicitação da Sociedade dos Observadores de Saci, Sosaci. No Ceará, o secretário de cultura, Auto Filho, encarou a ocupação da data do Halloween no calendário com o Dia do Saci, como uma necessária guerra dos mitos. Está disposto a fazer uma grande festa no próximo dia 31 de outubro, com música, dança e teatro de rua. Como bom filósofo, ele sabe que para enfrentar o poder econômico e midiático da ideologia do consumismo é preciso fazermos uma sinergia de artes e entes fantásticos.

Nesse sentido, a festa do Dia do Saci deve contar com todos os integrantes da comunidade de seres extraordinários do planeta, que quiserem participar, inclusive as bruxas que não se deixaram seduzir pelos feitiços comerciais do Halloween. Os mitos mais significativos das diversas regiões brasileiras, tais como o Caipora, Lobisomem, Curupira, Boto, Iara, Boitatá e a Mula-sem-Cabeça, devem ser ressaltados juntamente com o Saci, conforme suas influências locais.

A iniciativa do vereador Guilherme Sampaio, de criação do Dia do Saci em Fortaleza na data de 31 de outubro, chega em boa hora. Mesmo havendo um projeto tramitando no Congresso Nacional para a criação do Dia do Saci, estão sendo criadas leis estaduais e municipais para adequação da proposta às peculiaridades de cada cidade ou estado. Como se trata de uma ebulição cultural, não há motivo para esperar por Brasília para agir. É o que tem feito a Sosaci, que este ano, em parceria com o Museu Afro e o apoio das secretarias de Cultura e do Meio Ambiente de São Paulo, está programando para outubro uma celebração cultural do Saci e seus amigos.

O sentido dessa multiplicação de esforços segue o tom da música “um favor”, na qual Lupicínio Rodrigues (1914 – 1974) apela às gentes de todas as cores que “quem souber cantar que cante / quem souber tocar que toque (…) quem puder gritar, que grite / quem tiver um apito, apite / faça esse mundo acordar”. Lançar mão do Saci é um jeito que a sociedade brasileira está encontrando para fortalecer a brasilidade no achatamento global. Somos uma conseqüência dos nossos símbolos. O mundo real é o que está em nossas mentes e os mitos agem sobre o real.

Por ser uma consistente liga dos assemelhamentos brasileiros, o Saci reúne um grande potencial icônico para a produção de espaços de inversão imaginativa das estruturas sociais. Sua festa não dá mais para ser adiada, pela capacidade que apresenta de cerzir nossos laços culturais, ante o processo de dissolução social e política a que estamos submetidos. A prática lúdica desse exercício do avesso, pode acontecer em qualquer lugar e dentro das condições de cada comunidade, cidade, região, bairro, quintal, terreiro ou condomínio.

Ao deflagarmos a “guerra dos mitos” ensejamos que perguntas sejam feitas, pelo menos a respeito do propósito da ocupação da data de 31 de outubro pelo Saci e seus amigos. Por isso o Dia do Saci é uma chave de força, um interruptor que pode liberar nossa energia mais brasileira dos acumuladores da indústria do consumismo. A festa do Saci é uma forma inteligente, pacífica e alegre de enfrentamento da violência simbólica. É um ato de política limpa, feito com ludicidade integradora. Por ser uma espécie de imago da brasilidade, a figura do Saci aplica-se aos domínios do público e do privado, do coletivo e do individual, dando-nos uma chance de experimentação da nossa própria narrativa, em um exercício de parábase de auto-reconhecimento social e cultural.

A festa do Saci completa nossos argumentos sociais mais autênticos por ser também uma festa de mudança de perspectiva na relação com o entretenimento. Ela tem tudo para nos levar a entender melhor como é ser brasileiro em um mundo cada vez mais interdependente. O Saci é um mito unificador da nossa vocação futurista. O que talvez possa ser traduzido com a ajuda da observação do cartunista Mino, quando ele diz que “nossa tradição mesmo, não consiste em sermos tradicionais, mas modernos”.

O normal nas ondas novidadeiras do consumismo é a obsolescência precoce. Mas há casos como o do Halloween que deveriam ser passageiros e estão fincando raízes, inclusive em nossas escolas. O Ministério Público de São Paulo promoveu uma audiência pública em 1º de setembro do ano passado para discutir o Dia do Saci em um cenário marcado pelo aumento da festa das bruxas norte-americanas na escola brasileira. Das escolas paulistas que responderam ao questionário 46,47% dos estabelecimentos da rede pública de ensino estadual e 18,59%, das escolas municipais responderam que fazem alguma programação relacionada ao Halloween. Nas escolas particulares esse percentual é de 36,65%.

Esses elevados percentuais mostram que a nossa permissividade deve ter limites, principalmente por sabermos que a pedofilia de mercado não tem fronteiras nem escrúpulos. Uma coisa é certa: não é possível trocar de mito. Quando uma sociedade assume integralmente mitos impostos está na realidade alterando sua personalidade social e cultural, o que muitos chamam de identidade. E felizmente ainda não chegamos a isso.

O mito do Saci traz avisos das matas, dos bichos, da natureza, enfim, sinais que nos colocam em sintonia com a necessidade de estabelecimento de uma nova conduta da humanidade diante do esgotamento do planeta. A festa do Saci tem caráter apotropista, pois sua função define uma situação de reapropriação do direito de dialogar com os próprios mitos, aproximando-nos de nossas representações mais profundas e nos distanciando das superficialidades que operam sobre nossas mentes na força velada do poder sedutor da ideologia do consumismo.