A inclusão na lógica do pai de Franz Kafka
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno 3, página 3

Sábado, 06 de Agosto de 2005 – Fortaleza, Ceará, Brasil

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Com 36 anos de idade, finalmente o escritor tcheco Franz Kafka (1883 – 1924) teve coragem de fazer uma correspondência ao próprio pai. Escreveu, mas não entregou. Foi o bastante para a literatura universal ganhar uma das suas peças mais inquietadoras. Como toda obra literária a “Carta ao Pai” segue tempo afora levando os que a lêem por caminhos inesperados. Talvez o fato de particularmente tem ocupado os meus pensamentos com a questão das desigualdades sociais e me inquietado com as falsas soluções que, via de regra, parecem tomar conta dos nossos modelos de intervenção social, ao reler o texto de Kafka notei pontos de semelhança entre a situação embaraçosa do autor com o pai e o conflito da inclusão vivido no cotidiano.

Mesmo o mais bem intencionado dos corações corre o risco de pensar em inclusão a partir do que acredita ser melhor para o outro, sem muitas vezes ter noção a respeito daquilo que o outro pode achar que é melhor para si. Essa era a maior angústia de Kafka na relação com o pai. “Tu não tens a menor culpa a não ser talvez pelo fato de ter sido demasiado bom para comigo”. Esse é o maior problema das políticas de inclusão social entre indivíduos e entre culturas: há alguém necessitado que para suprir as suas privações deve se subordinar à razão imposta pelo seu protetor. Sem a consideração aos desejos, aos valores e ao ritmo do outro, sempre estaremos fadados ao insucesso das ações orientadas para o bem-estar individual e coletivo.

Fala-se bastante em respeito às diferenças. Entretanto, o dono da voz sempre se sente em melhores condições de qualificá-las. Assim, o que aparenta ser apenas diferença passa a ser visto como algo ameaçador. E o outro é apontado como o carente, o que precisa ser ajudado a entrar na zona de domínio do benfeitor. As estatísticas quantificam as misérias, suportam projetos de inclusão e justificam milionárias campanhas de solidariedade. Poucos procuram revelar os potenciais das pessoas e das comunidades pouco afeitas ao sentido de desenvolvimento estabelecido por quem patrocina. Nunca entendi porque admirar é tão mais difícil do que ter pena. Reconhecer o brilho do outro parece que dói, incomoda, quando deveria ser qualquer coisa de sublime.

É incrível como grande parte dos projetos de inclusão só consegue enxergar em seus beneficiários o que eles não têm. O que falta é mais de entender, de suprir e de controlar. Dar oportunidade para alguém desenvolver o que realmente é para que possa ser o que acredita, suscita sempre uma insegurança. Melhor, então, “incluí-lo”, colocá-lo nos trilhos, de modo que siga para onde se sabe o rumo e no vagão em que for “generosamente” colocado. Se para Kafka, os pais que exigem gratidão dos filhos não passam de agiotas, fica difícil de classificar os agentes socialmente responsáveis que têm como objetivo a obediência da pobreza e não a superação para a eqüidade.

Kafka reclama dos recursos educativos do pai, por ter sido posto ao relento numa noite em que, quando criança, choramingava e pedia água com a intenção de aborrecê-lo. Duvida se um pegar-pela-mão tranqüilo, um gesto carinhoso não tivesse conseguido dele tudo o que quisesse. “Eu teria precisado de um pouco de estímulo, de um pouco de amabilidade, de um pouco de abertura em meu caminho, mas em vez disso tu o obstruíste, por certo com a boa intenção de me fazer percorrer um outro caminho. Mas para isso eu não servia”. A inclusão na lógica do pai de Franz Kafka estava diretamente ligada àquilo que se referia à sua crença pessoal. Na sociedade, o sentimento de nulidade denunciado pelo escritor magoa a quem é ajudado por piedade. Sem quase nenhuma saída restam os ditames da sobrevivência, quer pela aceitação de sujeição à mentalidade dominante ou o rompimento com a hipocrisia por meio da violência.

Ser induzido a assumir um caráter exótico à própria cultura e consciência produz insegurança que, muitas vezes, se exprime em forma de agradecimento. Kafka escreve para dizer ao pai que ficava grato quando este parecia não perceber os seus apuros. A desatenção aliviava-o de qualquer sentença desfavorável. Dos filhos, ele era o que se desenvolvia mais devagar. Mas foi o que foi mais longe. Pensando bem, oito décadas após a sua morte, não sei do nome de qualquer de seus irmãos, mas estou fazendo uma reflexão sobre o meu tempo a partir do seu pensamento. Tivesse sido “incluído” totalmente nos modos desejados pelo pai não estaria hoje aqui a meu lado nesse diálogo atemporal. Na carta Kafka assume o pai como a sua medida de todas as coisas, embora tenha sido posto em situações que não podia corresponder: “Tu influíste sobre mim conforme tinhas que influir, só que tens de parar de considerar uma maldade especial da minha parte o fato de eu ter sucumbido a essa influência”.

A máxima da inclusão está nos mais variados discursos. Incluir virou o verbo da boa vontade, da solidariedade e da esperteza. Tem servido de novo tom para a cantilena de velhos guardiões de rebanhos. O desencontro de valores e desejos entre ações propostas como inclusivas e público alvo tende a ser interpretado como falta de ambição. O processo civilizatório ainda não foi suficiente para afastar de nós o medo primitivo da liberdade do outro. É fácil ter uma idéia do que o outro deveria gostar. Complicado é ajustar o que penso com o que o outro pensa, construir junto. A humanidade é vitoriosa na domesticação de animais. Cada bicho amansado é um bicho incluído no mundo dos humanos. São alimentados e protegidos dos seus predadores e, em contrapartida, ficam disponíveis como fornecedores de alimentos, segurança, diversão e “amizade” sem incompatibilidade de gênio.

Essa prática entre pessoas nunca deu muito certo. Mais dia menos dia a capacidade humana de simbolizar desmistifica intocabilidades. Kafka tornou-se um escritor universal porque considerou o seu direito em uma fuga interior e se deixou influenciar pela própria existência. “Essa oportunidade só poderia ser criada pela violência e pela subversão (…) eu perdi a autoconfiança diante de ti, que foi substituída por uma consciência de culpa ilimitada”. A esse fenômeno do desamparo comum experimentado por Kafka e seu pai, não cabe eleição de bom ou ruim, o ensinamento dessa dor está na compreensão da necessidade de um estágio que ainda precisamos nos esforçar muito para atingir que é o respeito à noção de mundo que o outro tem o direito de ter e de viver.