A infância em banho de rio
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno 3, página 3

Quinta-feira, 07 de Maio de 2009 – Fortaleza, Ceará, Brasil

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Realizei um desejo que estava contido em mim desde que me tornei pai, há dez anos: levar meus filhos para tomar banho de rio em água corrente em pleno sertão do Ceará. Foi no dia 1º de maio. Saíramos de Fortaleza para passar o feriadão do Dia do Trabalho na casa dos meus pais, em Independência. A certa altura da BR 020, no trecho entre Boa Viagem e Santa Cruz do Banabuiú (Cruzeta), avistamos da ponte que cruza o rio Carrapateiras uma tentadora praia de areia branca.

Não era o maior rio da estrada, nem o que tinha mais água, mas o que nos pareceu mais aconchegante, o mais poético, o das águas mais alegres. Tratamos de encontrar um jeito de chegar até lá. O mato estava crescido e só conseguimos acesso a partir de uma entrada, localizada a uns quinhentos metros depois da ponte, que dava a duas casas, das quais uma exibia graciosamente a combinação de cisterna com antena parabólica.

Perguntamos como chegar à pequena praia e a dona Cleonice, mãe de um garoto chamado Tiago, disse que o filho poderia nos acompanhar pelas veredas escorregadias. Quase todo o percurso foi feito por dentro do próprio rio, na agradável sensação de se deixar levar pela correnteza, enquanto surpresas de altos e baixos reforçavam o caráter misterioso da aventura nas águas barrentas. As margens estavam cobertas de cordas de salsa, cuidadosamente penteadas pelos momentos de cheia.

A brincadeira teve de tudo: saltos de cima de pedra, deslizamento em barranco de areia, mergulho para catar seixos rolados, percussão em pedrinhas coloridas, nado contra a corrente e muito converseiro sem eira nem beira. Em um certo momento, o Lucas, que nasceu em 1999, comentou: “Pai, agora sei porque os gatos, que comem peixe, também gostam de comer passarinho”. E olhando para o céu completou: “Quando estão voando com as asas paradas, os pássaros parecem peixes nadando”. No que eu retruquei: “É que o céu é o oceano dos pássaros, meu filho”.

O Artur, nascido em 2001, no século atual, como diz ele, estava inicialmente em dúvida se queria ir para o sertão brincar “das brincadeiras do passado”. Como sempre, foi o que mais deu trabalho para ir embora, quando a hora ficou adiantada e tivemos que retomar a estrada. Na despedida, ainda ganhamos pamonhas e milho cozido, de uma roça que estava ao nosso entorno. Tudo saboroso, tudo fresquinho e ofertado pela solidariedade daquelas amáveis pessoas, que acabáramos de conhecer. Em retribuição, pedimos ao Tiago que escolhesse um dos brinquedos dos meninos e ele preferiu uma bola de futebol.

Logo que voltamos ao asfalto, o sol se retirou, começou a chover e eu comecei a pensar uma porção de coisas sobre a profunda lição de humanidade, de atenção, de cuidado e de dignidade que recebêramos daquelas pessoas e, sobretudo, sobre a formação da sensibilidade na infância. Meu coração dava pulos de contentamento. Meus filhos não poderiam atravessar a meninice sem a experiência de brincar na correnteza do rio. Das minhas recordações de brincadeira, esta é uma das que mais representam a objetividade da imaginação.

Acredito na retomada da brincadeira como um dos recursos humanos dos quais precisamos lançar mão a fim de não entrarmos em extinção por estupidez. Brincar é uma inestimável opção de estímulo à retomada do convívio social e de senso pleno de destino. Na realidade convencional, onde os exageros da competitividade estão mais presentes do que a imaginação, o melhor antídoto para salvar a infância é brincar. Por isso, temos a obrigação de dar aos nossos filhos todas as lembranças boas que temos da nossa infância. Além de que é muito agradável ver uma criança brincando na natureza. A alegria, a poesia, o destemor… Não me canso de pensar nas cenas dos meus filhos no lúdico enfrentamento da correnteza.

Na correnteza do rio não há repetições, não há mesmice. Ali, a liberdade é experimentada ao ar livre, à água livre, ao ser livre… Como os pássaros que cantam voando; como os peixes que saltitam por cima da linha da água.

Na correnteza do rio, a regra da brincadeira é o encantamento, o divinizar da vida, a celebração da inocência, a descoberta espontânea do lugar de manifestação da cultura da infância.

Na correnteza do rio, a água não tem tempo para nos espelhar; ela não para, e, se não há reflexo, não há narciso. A água do rio é barrenta. Sua pureza está no frescor, na envolvência, no afago…

Na correnteza do rio, não se brinca esperando reconhecimento; apenas se brinca, apenas nos sentimos bem por estarmos em contato conosco mesmos, porque sentimos a água acariciando o nosso corpo e refrescando a nossa alma.

Na correnteza do rio, estamos dentro da paisagem; ou melhor; somos parte da paisagem. Estamos dentro da própria contemplação. O sublime irrompe do nada, porque somos o nada; a maravilha de existir plenamente, de saciar a sede de acontecer, sem dar satisfações, sem pagar ingresso, sem condicionamentos e expectativas.

Na correnteza do rio, a ingenuidade se confunde com a beleza caótica das águas em movimento; não há espaço para gestos roteirizados; a cada momento, uma ação, a cada farfalhar, uma atitude espontânea do ato de experimentar.

Na correnteza do rio, tocamos a água porque somos tocados por ela. Nela, ficamos à vontade para brincar tranqüilos, para passar protegidos pelas águas e de ser vestidos por elas, como um manto de calda evanescente.

Na correnteza do rio, descobre-se muito da construção da vida que se confunde com passatempo, pois a brincadeira ocorre no lugar onde o tempo flui com as águas, enquanto os músculos se exercitam para naturalmente segurar o corpo no agito das águas, sem quaisquer esforços protocolares.

Na correnteza do rio, somos o que somos, do jeito que somos, do tamanho que somos, da cor que somos, nem mais nem menos; somos o desfrute das permissões de nos recriarmos a todo instante.

Na correnteza do rio, o mundo que nos circunda começa com as águas que se vão e segue na brincadeira de que somos únicos, mas não sozinhos; uma agitação que leva à tomada de consciência de nós e da natureza.

Na correnteza do rio tudo é imprevisível e simples. A água turva não nos deixa ver se o que pode estar se mexendo sinuosamente é uma cobra ou um cipó. Entretanto, o súbito temor, o alerta, não passa de estímulo ao nosso senso de força para o exercício dos dons naturais.

Na correnteza do rio, o que se sabe por raciocínio lógico não vale. No fundo do rio a areia frouxa, movediça, travessa, desloca-se no pega-pega das pedras rolantes e abraça as pedras fixas do leito do rio, enquanto as crianças se divertem como grãos de areia.

Na correnteza do rio, o brincar é verdadeiramente uma brincadeira. Dominar a correnteza para não se deixar tragar pelas águas correntes não é domá-la. O jogo é de integração e não de dominação.

Nunca vi meus filhos tão abertos a pisar em lama e a saltar galhos arrastados pela correnteza. Nunca vi meus filhos tão dispostos a enfrentar espinhos de pé de sabiá para descobrir ninho de rolinha. Nunca os vi tão lavados de padrões quanto naquela ocasião em que, sustentados pela fantasia da correnteza, transformaram em danação e mistério o que parecia receoso.

O rio Carrapateiras, que certamente tem esse nome por conta das plantações de mamona que abundam na região, é difícil de ser localizado no mapa hidrográfico do Ceará, mas tenho a satisfação de dizer que ele passa a ter lugar de honra na cartografia das nossas boas lembranças; das nossas lembranças como rio e da nossa infância como correnteza.