A infância em extinção
Artigo publicado no Jornal O Povo, Caderno Vida & Arte, página 12

Domingo, 12 de Maio de 2002 – Fortaleza, Ceará, Brasil

Artigo em PDF

Encurta cada vez mais o período de exercício da infância e a sociedade joga a responsabilidade dessa redução para o espírito do tempo. O discurso vigente clama por paz, qualidade de vida e direitos da criança, mas entra em contradição quando cai no abismo da comodidade dos adultos em racionalizar a fantasia. Há poucos dias, na sessão especial da Organização das Nações Unidas sobre a infância, meninos e meninas de várias nacionalidades reclamaram de pedofilia, trabalho infantil, fome, situação de rua, guerra, orfandade provocada por Aids e tantas outras agressões que jamais afetam a saúde do mercado e que nunca sinalizam para a cura da síndrome competitiva dos adultos.

Todos esses pontos que as crianças são orientadas a expor em assembléias como a da ONU têm, evidentemente, muita relevância, mas é curioso o fato delas não conseguirem tocar na violência que sofrem com a perda dos espaços para a imaginação e dos laços comunitários. Os pais são coniventes com tais omissões porque individualmente sentem-se mais liberados para cuidar dos seus afazeres cotidianos e para “garantir o futuro dos filhos”. Nesse jogo de acesso antecipado ao mundo adulto, a criança acaba sem tempo para o exercício da inocência, que é a base para o equilíbrio humano. Saltar a fase infantil é voltar ao obscurantismo medieval, quando ser criança não passava de miniaturização.

Quanto mais surgirem gerações de pais sem infância, mais o mundo será povoado por filhos aptos aos irônicos prazeres da violência. Brincar de adulto vem deixando de ser uma fantasia de imitação atrelada ao desejo natural de crescer para ganhar a camisa-de-força de um estranho comportamento em busca de aceitação. A mídia instiga e explora comercialmente a valorização do sucesso sem limites éticos, da escatologia e dos programas de crianças com simulação grotesca de habilidade adulta. Diariamente a infância tem os olhos furados e os sentidos machucados por imagens e sons que vendem produtos pré-digeridos e que pregam a esperteza como conceito de inteligência.

Enquanto seres humanos o que nos distingue das máquinas que criamos é a sabedoria e não a inteligência. Ser inteligente é um atributo matemático e operacional perfeitamente transferível para os robôs. A sabedoria, não. A sabedoria está ligada à capacidade de aprender a distinguir e a selecionar impressões para a formulação da existência. Com a evolução da transmissão eletrônica de dados a confusão entre informação disponível e conhecimento tornou-se lugar comum. O refinamento para esse tipo de distinção começa na movimentação de limites que só a imaginação permite. Na música Pedrinho que integra o CD do Sítio do Picapau Amarelo, Dori Caymmi e Paulo César Pinheiro dão a chave dessa charada: “era o que queria ser / porque era um sonhador”.

Com o processo de desaparecimento da família nuclear clássica, houve uma transferência abdicada da responsabilidade da educação para os estabelecimentos escolares. A fragmentação do modelo criou uma nova dinâmica apoiada no slogan de que “lugar de criança é na escola”. Sem o devido aprofundamento do que isso significa, muitos pais sentiram-se aliviados e legitimados para praticamente largar os filhos ao livre arbítrio do novo factótum. A escola é um nó extraordinariamente essencial na teia do aprendizado e da convivência, mas não deve ser a âncora. Essa obrigação, esse papel de estabelecimento da confiança para a meninada se perder e se achar, é exclusivo dos pais.

Contaminados pela expectativa impaciente da competição, imposta e aceita pela sociedade de consumo, muitos pais e mães vivem incomodados com as demandas dos filhos. Dentre as saídas mais objetivas e traumáticas que essas pessoas têm encontrado para solucionar o problema das necessidades infantis, destaca-se a clausura virtual: crianças enganadas pela vaidade de serem percebidas como inteligentes, simplesmente pela capacidade de usar com astúcia vazia algumas ferramentas inteligentes. O pior é que é verdade, elas são inteligentes. Mas a tendência é que com tamanha concentração elas percam a capacidade de perceber-se no mundo real. E o mundo real não é o das exceções.

Os ambientes que definem os laços comunitários passaram a ser mais e mais diversificados e ampliados – já não cabem apenas nos bairros, nas escolas, nas praças, nos shoppings, nas tribos de atitudes, nas telas de cinema e televisão, nem nas quase infinitas combinações da rede mundial de computadores. O conceito de espacialidade mudou, mas a essência da natureza humana permanece inalterada. Seguir evoluindo depende de sociabilidade e cooperação. Para isso é preciso tratar com determinação as questões de amorização e solidariedade logo na infância. Bem ou mal, o pesponto e a conexão entre as novas comunidades ainda começam em casa. Na condição de âncora, cabe portanto aos pais uma pequena revisão dos seus desejos como forma de evitar a extinção da infância. Um esforço de consciência que não precisa ir além do possível.