Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno 3, página 3
Quinta-feira, 26 de Junho de 2008 – Fortaleza, Ceará, Brasil

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Os espaços para as discussões sobre o tema infância são muito tímidos nos nossos meios de comunicação. Mesmo as revistas, os programas de televisão e os cadernos dos jornais que são dirigidos à criança são, via de regra, questionáveis. Editorialmente esses temas são tratados como algo menor, algo que pode ser feito de qualquer jeito, aos pacotes e à mercê dos apelos comerciais.

Diante de um modelo precário de subordinação à produção de massa, as pessoas que conseguem perceber a realidade não traduzida pela mídia resistem a esse padrão e buscam uma visão na qual prevaleçam as expressões culturais mais próximas de onde a vida acontece. A descoberta de que essa busca é possível vem relativizando a onipotência dos tradicionais formadores de opinião.

Muitas pessoas têm procurado veios que possam fortalecer a autonomia e o reconhecimento da realidade marginalizada pela mídia, a fim de preservar e dinamizar o que acreditam que são e de conhecer o que realmente acontece no mundo. Começa-se a enxergar mais claramente que um programa de televisão, até mesmo o noticiário, é um espetáculo e, sendo assim, o que é dito, recortado e mostrado não precisa necessariamente condizer com a realidade.

Salvo raras exceções, as listas de livros mais vendidos, os vencedores dos prêmios de música e as indicações de cinema resumem-se a propaganda. E não tem problema que sejam assim, só que antes eram vistos como sendo realmente os preferidos, os melhores. A grande mudança que se processa no momento em termos de comunicação está exatamente na capacidade que a audiência vem desenvolvendo de distinguir que o que vai ao ar, às páginas dos jornais e da internet é apenas isso mesmo, enquanto a vida é a vida.

O despertar para essa compreensão tem resultado em trincheiras de comunicação nas quais os inquietos possam dizer que estão vivos em meio à guerra de recepção, de significados e de estilo de vida. São principalmente as pessoas que trabalham, que fazem coisas, que têm a dizer, a mostrar, mas que estão fora do domínio da lógica perversa da valorização limitada aos que podem pagar para aparecer.

Foi assim que, ao invés de se desgastarem disputando espaços de divulgação na imprensa, em um jogo desigual com os produtos e serviços prioritariamente comerciais, artistas, educadores, escritores, oficineiros, psicólogos, pais, pesquisadores e gestores de cultura se reuniram para criar um espaço virtual próprio, no qual são reunidas informações e estimulado o debate relativo à infância, pelos vieses artístico, social, cultural e educacional.

Dinâmicas e acostumadas a se mobilizarem em seus campos de atuação, essas pessoas resolveram criar primeiramente uma comunidade virtual de sentido, voltada para a cultura infantil e o exercício da troca de idéias e informações sobre o assunto. Dessa lista de discussão, resultou a criação do Portal Cultura Infância (www.culturainfancia.com.br) tendo à frente o ator, palhaço, pesquisador e diretor de teatro Gabriel Guimard.

Gabriel é parnaibano e tem sangue tremembé nas veias. Vive em São Paulo. Trabalhou na companhia do dramaturgo e bonequeiro francês Philippe Genty, é fundador do Centro de Referência do Teatro para a Infância e diretor da companhia de teatro Magamini da Cooperativa Paulista de Teatro. Mas Gabriel não carrega o piano do Portal sozinho, ele conta com um grupo de atores e de atrizes, cada qual com habilidades complementares.

O Denis Garcez é design gráfico e multimídia; o Juliano Barone e a Dani Barros são produtores culturais; a Adriana Napoli e a Clarice Isoldi trabalham com arte-educação. Mas o curioso e positivamente especial na formação do Portal Cultura Infância é que todos eles são originalmente de teatro, uma área da produção infantil altamente ativa, mas, paradoxalmente, pouco valorizada nos meios de comunicação social.

Gabriel montou ainda uma equipe permanente de ajudantes comprometidos com a popularização dos conteúdos de cultura infantil, sem a pretensão de massificação. Assim, somam-se ao projeto, contadores de histórias, palhaços, pedagogos, filósofos, historiadores, jornalistas, psicólogos, radialistas, escritores, musicistas, ilustradores, tradutores, fotógrafos, cineastas e dançarinas, em um esforço compartilhado de consolidação do ambiente do Portal.

Como não há um mal que não traga um bem, a criação do Portal Cultura Infância é um exemplo concreto da falha editorial existente nas redomas das redações. A sociedade dos celulares e dos MSNs, das lanhouses e das gráficas rápidas, não aceita mais se ver apenas em estereótipos midiáticos. A cabeça de muitos editores, acomodada nos encostos das poltronas dos donos da voz, não percebe isso. Muitos preferem acusar a população de não gostar de ler e de não se interessar por conteúdos não alienantes.

O Portal Cultura Infância chega para dar uma grande contribuição como centro de documentação, que inclui som e imagem, brinquedos e brincadeiras, banco de espetáculos e roteiros culturais, além de ter uma zona de produção colaborativa, espirituosamente chamada de wikinfância, numa alusão à enciclopédia on-line, de informações postadas e modificadas pelos próprios usuários, criada em 2001 pelo empresário estadunidense, Jimmy Wales.

Fico torcendo para que essa iniciativa maravilhosa do Portal seja analisada pelos gestores dos grandes meios de comunicação do País, não como uma afronta, mas como um aviso de pauta aos que atuam nos cadernos de cultura, nos cadernos infantis e nas revistas dirigidas à infância. Ele fornece um sinal de alerta e é uma maneira sadia e construtiva de reagir, de se mostrar, fornecendo perspectivas úteis para a discussão do jornalismo infantil e cultural.

O que se pode ser entendido como crise na comunicação tem um forte componente no espanto da sociedade diante da desconexão entre as descobertas que as pessoas estão tendo de si e o que elas encontram sobre si nos meios convencionais de comunicação. É a alegoria de Platão (427 – 347 aC), a descoberta de que a realidade não é feita das sombras projetadas no fundo de nossas cavernas.

Claro que precisamos considerar o fenômeno das facilidades de comunicação trazidas pelo mundo digital. Entretanto, o que vem alterando a relação dos leitores, ouvintes e telespectadores tem muito a ver com os conflitos sociais e culturais causados pela velha tática do mostrar ocultando. Isso começou a ser notado com o advento do controle remoto. O zapping desvendou a orquestração das agências de notícias, da interferência do poder político e econômico na definição das pautas. Com a Internet, ficou fácil comparar também as capas dos cadernos de cultura e infantis e notar que elas são praticamente as mesmas.

Neste aspecto, vejo o Portal Cultura Infância como uma luz para uma nova agenda de cobertura referente aos temas nele abordados; um farol a clarear parte do caminho sombrio da centralidade nas editorias, muitas vezes contaminadas por interesses pequenos e pela sensação fortuita de poder, que leva os meios a esquecerem de que são meios e não princípio ou fim.

O animador de tudo isso é que a infância está no ar em um sítio cultural, com condições de contribuir para ações integradoras e interdisciplinares, para a aproximação de instituições e profissionais que atuam no universo infantil, público e privado, para o estímulo à articulação entre as famílias, as escolas e as crianças. O Portal é ponto virtual de cultura, no qual a clareza da reversão das nossas expectativas, com relação à infância e à cultura, tem tudo para se traduzir em ação modificadora de escalas de valores e de padrões de sociabilidade.