A Juazeiro do Padre Verde
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno 3, página 3

Quinta-feira, 25 de Fevereiro de 2010 – Fortaleza, Ceará, Brasil

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A notícia de que a organização ambiental Greenpeace está distribuindo santinhos do Padre Cícero (1844 – 1934), como o padroeiro das florestas, veiculada neste Diário (19/02/2010) chega para mim como motivo de grande alegria. Esse tipo de intervenção contribui para a mudança de mentalidade da nossa relação com o esse significativo mito nordestino e para popularizar a importância da preservação do meio ambiente no semiárido.

Os argumentos para a distinção de Cícero Romão como defensor das matas, estão detalhados no Greenblog: http://www.greenblog.org.br/ (basta entrar com “Padre Cícero” em pesquisar). Em linhas gerais, o racional é que “os conselhos do Padim Ciço são atuais e urgentes” e que para ele era claro “que a melhor maneira de manter a mesa sempre farta era unir produção responsável com preservação ambiental”.

Em muitas circunstâncias tenho defendido a necessidade de tratarmos a questão do Padre Cícero pelo que ele representa enquanto ícone cultural. No capítulo “A botija do Padre Cícero Romão”, do meu livro “Anel de Barbante” (Omni, 2005) afirmo que “A vigorosa permanência do Padre Cícero na cultura, na política e na religiosidade da gente nordestina requer novos holofotes, não necessariamente sobre o que ele teria sido como personagem real, mas sobre a significação simbólica da sua força de catálise e do seu poder de centrifugação de padrões individuais e coletivos determinantes na nossa formação”.

Ainda no mesmo livro, ressalto que o “Padre Cícero anteviu o processo de desertificação que se alastra de maneira assustadora pelo semiárido brasileiro (…) Chegou a organizar uma doutrina na tentativa de instruir seus devotos para o desenvolvimento de uma consciência ambiental. Enunciava que as pessoas parassem de cortar as árvores e de caçar os animais selvagens; que não continuassem mais com as tradicionais queimadas; que fizessem manejo da criação a fim de deixar o pasto descansar; que evitassem erosão não plantando roçado vertical nas serras; que em toda casa fosse feita uma cisterna para armazenar a água das chuvas; que os riachos fossem represados de cem em cem metros para abastecer o lençol freático; que aproveitassem as qualidades das plantas da caatinga para o convívio com a seca; e que todo dia plantassem qualquer pé de árvore”.

No artigo “Padre Cícero a granel” (OPovo, 05/10/1999) falo da necessidade de pormos à prova a diferença da nossa geografia humana, aproveitando melhor o sotaque do potencial carismático do Padre Cícero e dando a essa história toda o tamanho que ela merece. “Urgem algumas incidências de luz que não afetem a fé e possam multiplicar a herança e os benefícios adicionais contidos nessa imagem emblemática de indiscutível onipresença no castigado sertão nordestino”.

Na mesma reflexão, reverberada no livro “Como braços de equilibristas” (Edições UFC, 2001), destaco alguns esforços que vinham sendo feitos na área do meio ambiente, como “o consórcio entre Ceará, Pernambuco e Piauí, para a incorporação nas suas políticas públicas do cuidado com a biodiversidade da Área de Proteção Ambiental da Chapada do Araripe”. Aquela região toda é muito especial e só tem a ganhar com o realce da figura do padre verde como tempero ao seu caldeirão eco-cultural”.

Com base na convicção de que o maior diferencial competitivo do Cariri é a sua cultura popular cheguei a propor que “o Ceará deveria ter naquela região pelo menos um evento arrebatador nesse sentido. Artistas do mundo inteiro marcariam um encontro de estilos multiétnicos para celebrar a beleza e a força da arte popular” (1999 e 2001). De certo modo, na última década alguma coisa nesse sentido tem sido feita, como o Encontro de Mestres do Mundo e a criação do Centro Cultural do Banco do Nordeste em Juazeiro. Mas é pouco, muito pouco.

Quando o Ministério da Cultura lançou a possibilidade de tombamento do patrimônio imaterial brasileiro, defendi no artigo “A herança do Padre Cícero” (OPovo, 09/12/2001) que precisávamos tombar o Padre Cícero: “A ambiência cultural da sua obra possibilitou desde a proliferação da estética de visão fantástica, retratada na literatura de cordel, à ética severa e honrosa da fé, patenteada nos ex-votos. Um mundo de respostas e indagações, misturado na golda do sentido da morte no cangaço e na evocação por verdes algarobais em plena caatinga. Tombar o Padim Ciço é jogar luz nos modos de fazer, nas maneiras de se manifestar e nos espaços onde se concentram e reproduzem práticas culturais coletivas da gente nordestina”.

No livro “Anel de Barbante”, compartilho a grata surpresa de ler neste Diário (11/08/2004) que o IPHAN iniciara o processo de registro da região do Cariri no Livro dos Lugares. “A matéria aparentemente não cita nada do Padre Cícero, mas fala das peculiaridades originalmente ricas dessa área de confluência de culturas indiscutivelmente ancorada em seu mito”. Não concordei, mas achei melhor do que nada. A minha preocupação com a vigência de uma visão redutora do alcance da figura de Cícero foi exposta no ensaio “O poder do mito”, na revista Fale! (julho/2002): “O futuro de Juazeiro, do Cariri, dependerá da compreensão que tivermos do fenômeno Padre Cícero e da mobilização que formos capazes de fazer para redimensioná-lo sem roubar-lhe a essência insurgente”.

No mesmo texto da revista Fale!, voltei a ressaltar a força política e cultural de Cícero Romão, ao me engajar na campanha que o elegeu como a personalidade cearense mais importante do século XX: “Padre Cícero é filho do Brasil de dentro e fez do Cariri o lócus da mais autêntica cultura popular nordestina. Agitou meio mundo e assombrou o Vaticano. Pelo tamanho da catálise que provocou, celebrizou-se tempo afora e, quase sete décadas depois da sua morte, foi eleito o Cearense do Século, numa promoção da Rede Globo de televisão, através do Sistema Verde Mares”.

No ensaio do livro “Anel de Barbante” cobro um pouco de lucidez: “Não dá para entender a não existência de pelo menos um lugar de destaque para Cícero Romão em Fortaleza. O Seminário da Prainha, onde ele estudou, fica no mesmo ponto de junção do Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura e da Praça do Cristo Redentor – com o Museu do Maracatu e o Teatro São José – e poderia ser um dinâmico espaço de impulsão, na capital cearense, de toda a gama cultural enleada na sua vida e obra”. E o Seminário está em reforma, quer dizer, a oportunidade está em obras…

Recordo que cheguei a pautar um debate sobre a importância de pintar a estátua do Padre Cícero, mas fui derrotado. “Descorada como as outras, a estátua dele não combina com a sua razão de existir, pois não traduz a alma em brasa dos peregrinos e seus múltiplos significados (…) Está na hora de pintar o Padre Cícero e mostrar que nada pode ser mais moderno e impactante do que a estátua de um santo popular, colorida a rigor, no alto de uma colina no interior nordestino” (1999/2001).

Para o centenário de Juazeiro (julho2011), resta-me a expectativa da mudança do nome da cidade, como uma justa homenagem ao Padre Cícero. No artigo “O oráculo de Juazeiro” (OPovo, 23/12/2001), reforcei que “a fonte de onde emana toda essa mística tem endereço, nome e lugar definido no mapa do Ceará. Chama-se Juazeiro do Norte e, mais dia menos dia, acabará sendo chamada de Juazeiro do Padre Cícero”. Que a distribuição de mudas de juazeiro seja um bom sinal de que a cidade possa aceitar para si o nome do padre verde que a inventou.