A manha universal de Pedro Malazarte
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno 3, página 3

Quinta-feira, 17 de Maio de 2007 – Fortaleza, Ceará, Brasil

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A prática da esperteza como atributo de valorização social tem sido uma das piores mazelas do mundo contemporâneo. Passar a perna no outro, se dar bem a qualquer custo, levar vantagem em tudo e outras expressões que traduzem esse comportamento destrutivo da vida em sociedade, fazem parte da anti-pedagogia dos tempos atuais. Esse é um fenômeno da urbanidade aleatória e da eliminação da originalidade da ilusão causada pelo consumismo.

Mas nem sempre foi assim. Quando as referências rurais eram dominantes e não se vivia em função das novidades do mercado, a esperteza não passava de um estado de espírito, referendado por rompantes de sabedoria e de graça. Tanto que produziu muitos admiráveis mitos estradeiros e “senvergonhos”. Em mais de uma década de pesquisa, entre 1970 e 1983, Ruth Guimarães, 87 anos, deteve-se sobre um desses vagamundos e publicou tudo em um inusitado livro intitulado “Calidoscópio – a saga de Pedro Malazarte” (São Paulo, Caixa de Histórias, 328p. 2006).

As histórias de Pedro Malazarte são altamente comuns na cultura oral brasileira, especialmente na nordestina, onde se manifesta também com intensidade nas alegorias inventivas da Literatura de Cordel. Em seu livro, Ruth trabalha com uma centena dessas histórias, na forma que ficaram na memória dos habitantes do Vale do Paraíba, no interior de São Paulo e parte de Minas Gerais. O que torna a obra de Ruth curiosa, além do tema em si, é que a autora consegue de modo muito peculiar, unir a pureza da sua cultura caipira com a modelagem acadêmica, imprimindo um quê todo especial ao resultado final.

Ruth Guimarães nasceu em Cachoeira Paulista, onde ainda mora. Saiu para fazer o Curso de Letras na USP e para ministrar palestras sobre cultura popular. Com quase duas dezenas de livros publicados, ela é uma escritora ímpar. Ao ler o seu primeiro livro “Água Funda” (Porto Alegre, Livraria do Globo, 1946), romance que retrata o universo rural do encontro paulista e mineiro na Serra da Mantiqueira, Antônio Cândido já chamava a atenção para a habilidade de Ruth na mescla do português clássico com a linguagem de gente humilde.

Na sua paz cachoeirense, Ruth Guimarães é autora e personagem da cultura valeparaibana. Ela mora em um sítio herdado do avô materno, onde cria galinha, cachorro, escreve, gosta de receber as pessoas para conversar e há trinta anos desenvolve pesquisa com ervas e raízes medicinais. Espirituosa, costuma dizer que ainda vai arranjar tempo para se dedicar à bruxaria, como se tudo o que faz já não fosse fruto de adoráveis encantos.

O livro sobre Pedro Malazarte é uma de suas magias híbridas. Nele, Ruth narra com visível precisão a figura imprecisa e o modo desregrado de vida desse gênio paracaboclo. Na descrição da autora, Malazarte nada tem, nada obtém e nada guarda. Ele surrupia o necessário à sobrevivência, sempre pregando peças nos mais abastados e abestados, sem maldade ou remorso. Na sua arte de vender fumaça e mentira, Pedro Malazarte é visto por Ruth Guimarães a partir de dois traços marcantes: a recusa e a ausência de crueldade.

No traço da recusa, insidioso e insubordinado, “ele se recusa a trabalhar, a ser patrão, a ser oprimido, a seguir o rebanho e observar compromissos”. No traço da ausência de crueldade, “as situações mais vexatórias, mais humilhantes, mais dolorosas, se resolvem num riso fácil”. E, para Ruth, achar graça é aceitar, por isso, o que quer que seja ou represente o Malazarte, nós somos ou seremos como ele, teremos o nome que o chamarmos.

Guiado continuamente pela oportunidade do trajeto, Pedro Malazarte não tem um lugar nem mala. Ruth apurou que quando muito ele carrega consigo um saco que larga por aí ou vende, convencendo algum otário que se trata de um saco mágico. A enganação em Malazarte se dá quase como um troco às adversidades e àqueles que se vangloriam dos benefícios que as circunstâncias sociais e econômicas lhes proporcionam. Nosso herói popular nunca rouba, o que ele consegue ganhar dessas pessoas é entregue com as mãos do próprio dono.

Certa feita, em uma noite de muito frio, Malazarte estava quieto em seu canto quando foi provocado por um grupo de rapazes muito elegantes que iam a uma festa.

– Você costuma enganar todo mundo, mas nós aqui você não consegue enganar.

– Eu não engano ninguém, não.

– Engana, sim, mas só porque pega os bobos desprevenidos.

– Não engano, não – respondeu Pedro – E logo hoje, que deixei em casa o meu livro de enganos.

– Não fuja da raia, cara, só porque estamos prevenidos e você não pode nos enganar.

– Se eu tivesse pelo menos o meu livro…

– Pois vá buscar a porcaria desse livro.

– Ah! Isso não. Eu não vou sair na rua com um frio desses por causa de uma coisa que não me interessa. Se eu tivesse pelo menos como me abrigar, eu iria.

– Pois tome o meu paletó – ofereceu um deles – e vá pegar o tal do livro dos enganos para ver se você consegue enganar algum de nós. Estamos prevenidos.

– Então eu vou.

Pedro Malazarte vestiu o paletó e saiu para pegar o livro de enganar e até hoje não voltou.

Esse é o espírito malazarteano em ação. Sua desenvoltura é associada por Ruth a de muitos outros personagens endiabrados, mas com raízes humanas e origens comezinhas. Compara-o a Joaquim Bentinho, de Cornélio Pires; a Romualdo, de Simões Lopes Neto; com Alexandre, de Graciliano Ramos e com qualquer bom mentiroso, pescador ou caçador. No Nordeste brasileiro, Pedro Malazarte é figura presente na música e na literatura, e está representado em sua inteireza em outros personagens como o João Grilo, popularizado por Ariano Suassuna no Auto da Compadecida, que circulou pelo cinema e pela televisão.

A pesquisa de Ruth Guimarães identifica como menção mais antiga do Pedro Malas Artes, em Portugal, a cantiga 1.132 do Cancioneiro do Vaticano, de autoria de Pedro Mendes da Fonseca. No século XVIII, Malazarte tem uma versão lusitana diabólica na ópera “Encantos de Merlin”. Na Espanha, Alonso Jerônimo de Salas Barbadillo publicou no tempo das grandes navegações “El sutil cordovês Pedro de Urdemales”. As alusões a Urdemales foram feitas com muita intensidade na península ibérica, inclusive na “Comédia Famosa de Pedro de Urdemales”, de Miguel de Cervantes.

Ruth Guimarães conclui que os ancestrais diretos do nosso Pedro Malazarte são os pícaros ibéricos: “Ao seu romance foram aglutinados os episódios em que a artimanha vence”. A autora encontra assemelhados de Malazarte em todo o mundo: Mâchepied, na França; Ulenspiegel, na Alemanha; Pacala, na Romênia; e Nicolauzinho, na Rússia. Desconfia ainda que todos vieram do tronco grego de Ulysses e de Autólico e da vertente oriental Mahabharata, na figura de Krishna, herói sempre vencedor, rico em estratagemas.

A dedução de Ruth é que Malazarte é ibero no nome e universal de manha e de episódios. Para ela, as pessoas acolheram essa figura libertária como o estabelecimento de uma possibilidade de fuga bem sucedida do mais fraco em suas batalhas cotidianas. Destaca que “no universo simbólico malazartiano, o riso tem um significado cruel, uma vez que se origina da impotência”. Diferentemente da esperteza na atualidade a satisfação de rir do ridículo no outro é uma arma dos oprimidos, uma vingança genial dos desvalidos.