A MPB na berlinda
Artigo publicado no Jornal O Povo, Caderno Vida & Arte, página 8

Terça-feira, 22 de Fevereiro de 2000 – Fortaleza, Ceará, Brasil

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Feliz da crise que tem como principal problema a abundância de oferta e não a escassez de demanda. O caso da MPB passa por essa assertiva. Enquanto, de um lado, contamos com uma produção musical inestimável, ampla e variada, por outro, a indústria fonográfica concentra sua verba de compra de espaços de mídia para a divulgação de um número muito reduzido de produtos segmentados e de qualidade duvidosa. Em um país como o Brasil, reconhecido por sua fervorosa multiplicidade criativa musical, só mesmo o coração frio dos executivos de multinacionais para insistirem numa fórmula tão destruidora do nosso patrimônio imaterial. Com a recente compra da EMI e da Warner pela American On Line, o maior portal de internet estadunidense, caem para quatro as chamadas majors: ficam AOL, BMG, Sony Music e Universal (ex-PolyGram). Juntas, lutam para se livrar da rebordosa da saturação estética que criaram e para manter os cerca de 95 por cento do mercado brasileiro de discos, que dominavam com uma certa tranqüilidade.

Existem controvérsias quanto a esse percentual, que coloca o Brasil como o sexto mercado mundial de discos com faturamento acima de um bilhão de dólares. Atrás apenas, e por ordem de tamanho, dos Estados Unidos, Japão, Reino Unido, Alemanha e França. Contudo, esses números atendem, simplesmente à matemática das big four. Estatísticas paralelas indicam o Brasil como o quinto mercado mundial. A fatia oculta tem ramificação equalizada entre os pequenos selos alternativos e a produção independente que, via de regra, oferecem músicas de qualidade, e as gravadoras regionais, que investem prioritariamente na “artesania’’ musical. Descontentes com a existência desse crescente pedaço solto do comércio musical, o cartel da produção fonográfica têm investido alto em estratégias para reassumir o monopólio.

A mais visível ação dessa tática é a campanha contra o que chamam de CDs piratas. Neste episódio, recorrem à habilidade que os portugueses tiveram ao escrever a história oficial do Brasil, quando colocaram nos livros escolares que os holandeses e os franceses que chegaram à nossa costa eram invasores e, por isso, foram expulsos. Como se a condição deles fosse muito diferente. Quem vê a campanha, fica logo sugestionado a pensar no quanto as grandes gravadoras têm razão. O texto principal, ilustrado com fotos de artistas renomados, diz assim: “Um país sem cultura é um país mudo. Um país sem música é um país surdo. Um país que deixa tudo isso acontecer é um país cego”. E o argumento prossegue, reforçando a idéia de que “a falsificação de CDs está acabando com a música brasileira” e defraudando a economia brasileira. Que a prática da cópia não autorizada é condenável, não há dúvida, mas quanto à questão da economia e da violação desse patrimônio nacional que é a música, é preciso pegar mais leve. Primeiro, porque quem mais tem aniquilado a nossa música é a rotina predatória das gravadoras, e segundo, porque, como multinacionais, o polpudo lucro que aqui ganham, levam para os seus países de origem.

A turbulência é respeitável por sua magnitude. Os prejuízos e a inadimplência nas cadeias de lojas de discos passam dos limites. A Aky Discos, rede pernambucana que cobre todo o Nordeste, com a forte distribuição de requentados ritmos do modismo vulgar, anunciou uma queda de 30 por cento no faturamento do ano passado. Se o cenário não mudar, boa parte dos seus 76 pontos de vendas estão ameaçados de sumirem do mapa. Em Fortaleza, nem mesmo o charme do arquetípico ano 2000 vai possibilitar a realização do Pré-Carnaval de diques, abadás e foliões arrebanhados em corredores da avenida Beira-mar. Aliás, nunca entendi muito bem como é que existe algo que é “pré” do que não existe. Vestido de idiossincrasia ou não, o certo é que não apareceu patrocinador para essa micareta. A não ser que os executivos públicos peguem mais uma vez o dinheiro dos nossos suados impostos para bancar a festa, como já fizeram até em Miami.

A saturação desses eventos artificiais começa a atingir inclusive o intocável Fortal. Os organizadores dessa parada de diversão marcial, que conquistou o título de maior micareta do Brasil, já estão anunciando os pacotes promocionais facilitados, com os devidos parcelamentos, para tentar garantir um acontecimento marcado para a segunda quinzena de julho. Pelo prazer do entretenimento barato, as pessoas até continuam freqüentando regularmente os parques de forró bichado, pagode diet, breganejo, axé music e pop religioso. Mas na hora da compra de discos recuam como quem pressente a tapeação. Compra-se um CD e somente uma faixa agrega as condições mínimas para, de tanto tocar no rádio e na televisão, dar a impressão de que é um sucesso. O restante não serve pra nada. Há uma corrente de produtores defendendo a volta do velho compacto, que tinha duas faixas, uma de cada lado. Em CD pode ser simplesmente uma música. A produção é bastante módica e talvez fique mais fácil de empurrar no consumidor menos exigente.

No vale-tudo para resguardar o controle da situação, apelam inclusive para a fragilidade emocional de Roberto Carlos, após a morte da sua mulher Maria Rita. Este ano, o rei não vai esperar o Natal para o lançamento tradicional do seu disco. Está previsto para maio um álbum de músicas sertanejas e breganejas cantadas por ele. Enquanto isso, os produtores catam mauricinhos e dinossauros para a gravação de CDs ao vivo, com posterior manipulação de estúdio. “Quando o cara está num momento esquisito e não sabe o que fazer, grava ao vivo”, comentou semana passada, na Folha de São Paulo, o compositor e produtor Nelson Motta, que está lançando o livro “Noites Tropicais” sobre os seus 40 anos de relação íntima com parte significativa dos astros da MPB. Em compadrio com a TV Globo, as multinacionais do disco estão incentivando a “revelação de novos talentos”. Tem sido um tanto quanto engraçado o uso deslavado deste expediente para proteger e reanimar a imagem dos bem-comportados garotos de programas globais.

Nada indica a possibilidade de revelação do tanto que temos de música de qualidade país afora. Um compositor de verdade, um cantor, uma intérprete que se respeita e respeita o público, é visto como aporrinhação. A arrogância dos donos do dinheiro não suporta diálogo. O negócio é mandar. Por isso preferem fabricar ídolos obedientes, embora com curto prazo de validade. É uma questão de desmanchar, reciclar e colocar novamente na prateleira. Não querem mais cair na loucura de promover gente como Chico Buarque e Tom Jobim, que ganharam o festival da própria Globo com a música “Sabiá” nos idos da ditadura militar. Ficaram com medo, querem é distância de sabiá. A opção pelos pardais parece bem mais em conta. Gostam de andar em bandos, furam os ovos das outras espécies e comem de tudo sem reclamar. Nos campos da China vermelha foram considerados aves daninhas e comparados a gafanhotos, ratos e mosquitos. No campo da música plural brasileira, não precisamos chegar a tanto.

Para as big four, os pardais da música são preciosidades a serem preservadas, enquanto servirem para a exploração sem pena do nosso generoso mercado fonográfico. Não é de surpreender, portanto, o que tem sido realizado nesse sentido. O festival do Faustão é tão patético que não merece sequer comentários. A escolha das cem músicas do século, em dezembro de 1999, teve diversas composições bem escolhidas, mas interpretadas preferencialmente pelos tais pardais. Na semana passada, a Globo anunciou o programa “Brasil por natureza” e, com essa mania de ilusão que a gente tem, acabei me agendando para assistir. Não é que, mais uma vez, estavam lá os ditos pardais cantando clássicos da MPB! Foi triste, o choque entre as imagens exuberantes das regiões brasileiras, o “Ponteio” de Edu Lobo como pano sonoro de fundo e as sinistras entrevistas intercaladas pelo canto dos pardais.

Eles são espertos, sempre colocam algum artista de verdade, algum sabiá, nessas divulgações, para amaciar o ferrão. Agora, está sendo lançado o Festival da Música Brasileira, cujo objetivo central revelado é “a divulgação e promoção de obras musicais inéditas”, mas cheira mesmo é a busca de adubo musical com nutrientes poéticos para salvar cantores vegetativos. Adivinhe quem vai interpretar as composições selecionadas. Talvez desse para arriscar alguns nomes, mas não quero exagerar. Vou apenas reproduzir a cláusula 19 do regulamento: “A Rede Globo de Televisão poderá escolher livremente, a seu exclusivo critério, o(s) intérprete(s) e/ou arranjador(es) para as músicas que serão executadas ao longo do Festival e nele sincronizadas”. Um detalhe da cláusula 12, é que, além das três melhores músicas, tem prêmio para o melhor intérprete. Mas não é só de armações que surgem oportunidades. Estão abertas também as inscrições para o Prêmio Eldorado/Visa, edição compositores. Ao contrário do Festival da Globo, no qual cada autor concorre com uma só música, o da rádio Eldorado exige um conjunto de sete composições, reduzindo a participação aventureira. O concurso conta com o apoio do jornal O Estado de São Paulo, que tem contribuído editoralmente para o fortalecimento da MPB.

O compositor Martinho da Vila costuma dizer, com lógica na sua razão, que a gente precisa ter uma certa paciência com a pagodização da música no Brasil. Na opinião dele, essa gente está ocupando não o lugar dos artistas de MPB, mas o lugar da música norte-americana. Pode ser, mas é duro encarar o racismo higiênico dos carecas de ternos clonados para o pagode light. É duro ter a sensação de que todo lugar do país virou uma arena de peões de Barretos, símbolo da ostentação rural, do poder com tempero de soja, café, leite e laranja da UDR, sediado na faixa que vai de Maringá (PR) ao interior de São Paulo, Minas e Goiás. É duro aceitar a mercantilização artesanal da genialidade popular do forró, onde os artistas passaram a ser os proprietários das grifes de bandas. É duro agüentar toda a azucrinação tautológica que vem ininterruptamente do fricote ao axé music. É duro ser tentado à conversão do não tão santo pop religioso que as gravadoras elevam aos céus, e dizer que graças a Deus o lixo é nosso. Sufocado em meio a essa zoadeira, dá alívio ver procedimentos como o do Lobão, que resolveu peitar a indústria do disco, lançando seu novo trabalho, “A vida é doce” em bancas de revistas e contando com o apoio de rádios comunitárias. Em seu rastro, outros artistas tais como Geraldo Azevedo, Léo Jaime, Blitz e Baby do Brasil, começa a chegar às bancas.

O deslocamento do eixo cultural “sudestino” para focos regionais, também ataranta os executivos das grandes gravadoras. O surgimento de tevês e rádios comunitárias, canais por assinatura, internet e a proliferação de estúdios de gravação, facilita a consolidação de mercados regionais. No Ceará, por exemplo, a Somzoom Sat, do empresário Emanuel Gurgel, vende forró 24 horas para 95 emissoras de 14 estados, em padrão FM. Temos a fábrica de discos CD+, com avançadíssima tecnologia, um sem-número de estúdios digitais e analógicos e uma nova geração talentosa que, embora maculada por atitudes ainda submissas, merece ser vista em sua diversidade criadora. Em quase todo o Brasil essa floração ganha corpo, cores, cheiros e sons. A MPB está na berlinda. Pena que nas regras vigentes, diferentemente das cirandas infantis, o personagem anônimo é quem está no alvo dos comentários. E fica difícil saber quem será seu substituto na brincadeira ou mesmo se haverá alguma alteração na farra ignóbil dos pardais.