A música e a perna do Saci
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno 3, página 3

Quinta-feira, 30 de Outubro de 2008 – Fortaleza, Ceará, Brasil

Artigo em PDF

Em uma vasculhada pelo acervo do pesquisador Miguel Ângelo de Azevedo (Nirez), do jornalista Nelson Augusto, da Rádio Universitária e nas minhas próprias reservas fonográficas, encontrei dezenas de músicas compostas por força da existência do Saci-Pererê. Em todas as décadas do último século, o Saci foi cantado com muita espirituosidade nos mais distintos ambientes da música plural brasileira. Esse fenômeno de expressão de vigor marginal aos interesses dos sistemas dominantes reforça a minha hipótese da perna invisível da cultura, segundo a qual os casos de amputações simbólicas, como o da perna do Saci, estariam relacionados a uma resposta neurocultural de valorização das essências e não das formas ou funções.

Em 1909, o dueto Saci-Pererê de Chiquinha Gonzaga é gravado pela dupla Os Geraldos. No ano de 1913, a polca Saci, de J.B. Nascimento, chega ao disco de cera pelo Sexteto da Casa. Na década de 20, Gastão Formenti grava uma toada (1918) e uma canção (1929) com o mesmo título Saci-Pererê, mas de autorias de Joubert de Carvalho e de J. Aimberê/Bide. Os anos 30 contam com a canção Teu olhar é um Saci, de Cipó Jurandi e Décio Abramo, na interpretação de Arnaldo Pescuma (1930) e com o batuque Saci-Pererê, de J.B. Carvalho, com o Conjunto Tupy (1932). O título Saci-Pererê se faz presente na década de 40, na polca de Mário Genari Filho (1948), e no arrastapé de Ivani, gravado pela dupla Zé Pagão & Nhô Rosa (1949).

E o cancioneiro de sacizisse segue na segunda metade do século passado com o baião Saci, de Antônio Bruno e Ernesto Ianhaen, na voz de Inhana (1956) e duas músicas Saci-Pererê, uma marcha, de Carlinhos e Galvão, registrada por Edir Martins (1957) e um cateretê, de Torrinha e Piracicaba, na bolacha de cera com Torrinha & Canhotinho (1959). Nos anos 60, Araci de Almeida grava a marcha Saci-Pererê, de Henrique de Almeida e Rubi (1960), Demetrius põe a voz em Rock do Saci, de J. Marascalco e Richard Penniman (1961) e Clóvis Pereira interpreta Samba do Saci, de Osvaldo Nunes e Lino Roberto (1963).

A década de 70 torna-se fértil em composições sacizísticas. Os Secos & Molhados cantam “Bailam corujas e pirilampos / entre os sacis e as fadas”, na música O Vira, de João Ricardo e Luli (1973). Os Almôndegas entoam “Quando a meia-noite me encontrar junto a você / algo diferente vou sentir / vou precisar me esconder / Na sombra da lua cheia / nesse medo de ser um vampiro, um lobisomem, um saci-pererê”, na Canção da meia-noite, de Kleiton e Kledir (1975). Guto Graça Mello compõe Saci, instrumental para o disco do Sítio do Picapau Amarelo (1977), e Saci-Pererê é título de música da Banda Terreno Baldio (1977) e de Guilerme Lamounier (1978).

Nas duas últimas décadas do século XX a sacizisse continua com Saci, de Paulo Jobim e Ronaldo Bastos, em vinil do grupo Boca Livre (1980), Sacirerê, de Ruy Maurity e Zé Jorge, com Ruy Maurity (1984), Sasaci Pererê, de Jorge Bem Jor (1986) e Saci-Pererê, de Gilberto Gil (1980). De Niterói, Bia Bedran canta a infância para despertar o Brasil, “Brincar no quintal / Pra renascer a criança / Moleque levado / Saci-Pererê”, na sua emblemática Quintal (1992). Villani-Cortês lança a peça para flauta A terceira folha do diário do Saci (1994), o violonista Carlinhos Antunes, compõe Saci-Pererê (1996) e a cantora Mônica Salmaso grava Saci, de Guinga e Paulo César Pinheiro (1998).

De nota em nota, o Saci pula de século, impulsionado pela música. Itamar Assumpção faz um alerta ambiental, “Eu fui a Cuiabá pra no Pantanal olhar a bicharada / eu fui pra ver não vi, que decepção senti / Vi quase nada / Eu não vi o quati, não vi anta nem sagüi, onça pintada / Eu não vi o saci, não vi o grilo cri-cri / Vi quase nada” e canta Adeus Pantanal com Tetê Espíndola (2000). A música Saci de Guto Graça Mello, permanece no Sítio da Dona Benta, mas muda o título para Pererê Peralta, em versão com Carlinhos Brown, “Pula, pula, some e dança / como uma criança segue seu destino / se esconde na floresta / nunca perde festa / quer se divertir” (2001). Gal Costa grava Grande Final, de Moraes Moreira para dizer que “Viver da pé, dá pé viver / Pé de saci / Pererê, pererê, pererê” (2004). O grupo A Cor do Som balança em cd com Dança, Saci, de Mu Carvalho, (2006).

Entro nessa ciranda de saciedade e componho, em parceria com Orlângelo Leal, da Banda Dona Zefinha, a música A Festa do Saci, “Estou aqui meu Saci / estou aqui chamei você / Pererê chamei você / Pode chegar, me abraçar / o vento é bom de assobiar / Sou Boitatá, sou Caipora / Me apavora, eu vou gostar” (2007). Em homenagem a Francisco Mignone, a pianista Clélia Iruzun grava Saci (2008). O Quarteto Pererê, que já tinha feito Saci Armorial e Suíte Sacizística, junta as pontas do passado e do presente em uma só roda musical, com a Polka do Saci, adaptação da polca Sacy-Pererê, de Sebastião Nogueira de Lima (1917), e a canção Liberdade Pererê, de Dinho Nascimento, ambas gravadas no cd Balaio, que ainda está para sair da fábrica (2008).

A gravação da polca Sacy-Pererê cumpre, um século depois de sua criação, o desejo de um dos participantes da pesquisa que o escritor Monteiro Lobato fez em parceria com o jornal O Estado de São Paulo, em 1917. Mesmo se considerando “com poucos recursos artísticos”, Sebastião Nogueira de Lima deixou a partitura dessa composição que fez para o Saci, inspirada no canto de chamada de um passarinho, “habitante de brejos e margens de rios”, que “quase fala – sacy-pererê”. Ao fazer sua escrita musical, o autor dessa polca para piano declarou literalmente a intenção de contribuir “para que os novos compositores musicaes se inspirem, concorrendo, assim, para a glorificação do Sacy-Pererê”. E, como felizmente podemos testemunhar, seu esforço não foi em vão.

Da mesma forma que a imagem do Saci pode representar, na psicologia junguiana, as sombras da rejeição aos atributos lúdicos que não se ajustam aos padrões de comportamento estabelecidos pela sociedade, essa imagem foi racionalmente segregada nos filtros do prestígio cultural brasileiro, por força dos interesses religiosos e políticos investidos na modelagem da nossa mentalidade colonial. A solução oficial encontrada para evitar que o mito continuasse agindo no cotidiano das pessoas foi a do aldeamento comemorativo. Por isso, em todo mês de agosto as escolas levam as crianças para um passeio no zoológico do folclore, quando elas podem visitar, dentre outros, o Saci-Pererê, a Mula-sem-cabeça, o Boto-cor-de-rosa, o Caipora, o Curupira, a Comadre Florzinha e a Iara.Todos folcloricamente enjaulados.

O folclore foi uma invenção do império britânico, disseminada a partir da metade do século XIX para promover o isolamento da cultura popular das suas lendas, crenças, canções, ritos e mitos. Assim, ao atravessar gerações ressignificando os sons das matas que inspiraram o nascimento desse mito brasileiro, o cancioneiro sacizístico torna evidente a existência dos rastros da perna invisível da cultura. Depois que li o livro “Com uma perna só”, de Oliver Sacks (Companhia das Letras, 2003), no qual o autor atribui à música a chave para o retorno do seu membro alienado, foi que me dei conta de que no meu livro/cd “A Festa do Saci” (Cortez Editora, 2007) a libertação dos seres imaginários fora feita por meio da música. Foi tec-taqueando em uma velha máquina de escrever que encontrei, inclusive, a mistura de ritmos que libertou o Saci.