A pessoa é para o mundo que inventa
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno 3, página 3

Sábado, 25 de Junho de 2005 – Fortaleza, Ceará, Brasil

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Diretor de filmes publicitários, Roberto Berliner não parece bobo nem nada. Sabe que existe uma leva de privilegiados da apartação que tem prazer em tirar sarro da intimidade das pessoas comuns. Principalmente se essas pessoas são capazes de romper com o cenário paralisante da rotina das misérias. A incompreensão dos veios culturais de uma determinada realidade produz exotismo e, conseqüentemente, um poder especial de atração. A situação de binaridade entre a exclusão e a participação também se projeta na retórica coercitiva da sintaxe oscilante do cinema. O filme “A pessoa é para o que nasce” conta de saída com a força existencial das três irmãs cegas, sobre as quais elabora o seu discurso, sem no entanto conseguir corresponder à grandeza do tema que aborda.

Apresentado como de inclinação solidária, revela-se um trabalho egoísta e incapaz de estabelecer uma relação elevada entre a fenomenologia evocativa do canto e do toque do ganzá e a leitura contemporânea da linguagem cinematográfica. É um filme por onde o preconceito se projeta através da mentalidade voyerista do “big brother” urbano. O diretor apela para o recurso da sedução como forma de conseguir a exposição crua de conflitos pessoais restritos à sobrevivência. Como um galanteador de meia-tigela confunde o encanto causado pela carência crônica de atenção com uma suposta paixão que uma das irmãs declara por ele, em um donjuanismo desnecessário e um tanto sádico. O deslize para a vulgaridade novelesca compromete a integridade da obra.

 

Como a compreensão da realidade depende da configuração que fazemos do que acontece no mundo, “A pessoa é para o que nasce” diz mais do que Roberto Berliner quis mostrar. O que de certo modo salva o filme é essa possibilidade de leituras subliminares que, estando atentos, podemos fazer. Nesse sentido é um bom filme porque mostra sem querer uma troca de caricaturas que se revezam, na condição de criadores e criaturas, pelos universos da visão e da não-visão. É um espetáculo no qual a metalógica do sujeito, em circunstância de transe de sensibilidades, vaga entre o visível e o invisível. Ao darem lugar a essa oposição de sentidos, o diretor e as três mulheres cegas cedem involuntariamente e por motivos distintos o espaço de atenção para o que não conseguiram manifestar de maneira racional.

Quando elas encaram o desejo de produção de escala para a expansão do entendimento ele as leva ao alto de uma grande pedra para que “não vejam” a imensidão da caatinga. A cena se repete no topo de um edifício em São Paulo de onde Maria, Regina e Conceição “contemplam o nada”. Mas não ter o sentido da visão não impede a observação dos cheiros, silêncios, sons, sensações térmicas, eólicas e gravitacionais. Acontece que o filme não aproveita essas dimensões e deixa escapar inúmeras oportunidades de sublimação. Fosse mais maduro um pouco, o diretor Roberto Berliner teria percebido que o pêndulo da vida balança da realidade para a ficção, passa pela realidade novamente e se alonga até a utopia. Em “A pessoa é para o que nasce” ele fez um recorte do centro da realidade para o ângulo ficcional e com isso restringiu a movimentação livre do fio que mantém suspensa a criação humana.

Se compararmos o tratamento vulgar, dado por Berliner às personagens do seu filme, com a angulação inspiradora desenvolvida por Walter Carvalho no também documentário de longa-metragem “Moacir, arte bruta” (prêmio especial do júri no 15º Cine Ceará) torna-se fácil distinguir o que estou tentando identificar como exploração de um tema com limitações de aproveitamento estético. O estilo de vida do solitário pintor goiano Moacir, quase surdo, quase mudo e de comportamento excêntrico, ganhou brilho especial com o filme de Walter Carvalho. Ele foi exposto de maneira sensata, com realce do seu potencial inventivo e da tradução espontânea que recebe da sua pequena comunidade na Chapada dos Veadeiros. Já em “A pessoa é para o que nasce”, percebe-se a saliência do diretor por ter conseguido tirar a roupa das três irmãs cegas em uma deslocada circunstância de banho de mar. A pobreza dessa passagem é de tal ordem que beira o anacronismo das chanchadas. Embora se coloque com jeito de quem procura resgatar dos escombros do anonimato uma matéria passiva e virgem, o filme incorre no risco do antropomorfismo modernoso.

Para quem passou a vida inteira esmolando pelas calçadas, enfrentar a aventura de representar o próprio papel no cinema deve ter sido algo desnorteador. Entretanto, a coragem sedimentada no cotidiano da insuficiência é mais forte do que qualquer discernimento do querer. A aquiescência ao conceito de celebridade evidenciado por Roberto Berliner, parece integrar o grotesco que as acompanha numa longa história de privação. Quantas moedinhas valeriam a falsa consciência do que são e do que representam? O aquário bidimensional da tela do cinema prende e solta ao mesmo tempo. Como quem captura um peixe, faz a foto e o devolve às águas do rio muitas vezes com as marcas do anzol. O longa-metragem de Berliner falseia a realidade ao deslocar drasticamente as personagens do que elas são para o plano novelesco do desespero, corroendo assim a poética do ser.

A sutileza da temática tão bem escolhida por Berliner foi inibida pela ansiedade esquemática do diretor. Passa clandestina na tela esperando a resposta silenciosa da platéia. As três irmãs cegas têm mais a oferecer do que o encontro com a própria objeção. O triunfo das conseqüências de terem aberto o cipoal dos seus dramas pessoais é uma incógnita entregue aos caprichos do tempo. Apoiadas na experiência objetiva de quem usa a arte para pedir esmolas, elas poderiam ter manifestado muito mais dos seus fundamentos vitais sem expectativas de algo em troca. Ao invés de debochar das expressões alusivas à visão, utilizadas com freqüência pelas cegas tocadoras de ganzá, “A pessoa é para o que nasce” poderia muito bem ter contribuído para desvendar como uma mentalidade oral se pronuncia na linguagem visual.