A plataforma Lobato
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno 3, página 3

Sábado, 29 de Abril de 2006 – Fortaleza, Ceará, Brasil

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Toda vez que temos uma visão é porque estão postas as possibilidades de realizá-la. Entretanto, nem sempre as circunstâncias permitem que as realizemos. Quando acontecem esses impedimentos, os mais acomodados reduzem-se às forças do presente, enquanto os inquietos saem semeando os campos das mentes para que seus sonhos vinguem em algum lugar do futuro. Assim foi a vida de Monteiro Lobato (1882 – 1948) e a sua obstinação pela brasilidade fazedora.

A história da incursão de Lobato na luta pelo petróleo no Brasil daria um grande filme, uma grande novela épica, uma mini-série fascinante de televisão. É a história do diálogo entre o sonho, a determinação e a construção teimosa da realidade. Tudo começou nos anos 1920, quando Lobato trabalhou como adido comercial do governo brasileiro nos Estados Unidos. Lá, viu de perto a evolução da indústria automobilística e tomou pé da importância que o petróleo teria nas décadas vindouras. Despertara para o usufruto que os brasileiros teriam se fosse descoberto petróleo no País.

Ao retornar à terra natal passou toda a década de 1930 fazendo levantamentos geofísicos e prospecções, com a Companhia Petróleos do Brasil, num esforço privado à revelia da compreensão oficial. Enquanto cavava poços nas mais diversas regiões fazia palestras e instigava os meios de comunicação a discutir a relevância do petróleo para a independência econômica do Brasil. Em 1935 publicou pela Companhia Editora Nacional, o livro “A luta pelo petróleo”, do anglo-americano Essad Bey, intensificando denuncias da ineficiência dos órgãos públicos com relação ao tema, acusando o governo de “não tirar petróleo e não deixar que ninguém o tire”. No ano seguinte, escreve “O escândalo do petróleo”, causando incômodo à multinacional Standard Oil, pois nessa obra Lobato coloca a questão do petróleo como de soberania nacional. Foi tão incisivo em sua convicção que acabou preso, em 1941, pelo governo de Getúlio Vargas.

A descoberta oficial de petróleo no Brasil se dá em 1939. Por refinado capricho do destino o primeiro poço jorrou em uma terra, na periferia de Salvador (BA), que havia sido de um fazendeiro cujo sobrenome era Lobato, embora esse proprietário não tivesse qualquer vínculo com o escritor. Mas, considerando uma visão como antecipação de algo capaz de ser concretizado, o primeiro poço de petróleo brasileiro foi encontrado no sito da Dona Benta, em 1938, e está literariamente registrado no livro “O Poço do Visconde” (Brasiliense) editado por Monteiro Lobato em 1937. A literatura é uma maneira de organizar a realidade e por isso é em si uma realidade que se materializa na interpretação do leitor.

O livro “O Poço do Visconde” foi uma janela por onde as crianças da primeira metade do século passado puderam vislumbrar o que está acontecendo agora, com a nossa capacidade de produzir o petróleo em volume que necessitamos. É um livro de extrema atualidade por ser ferramenta básica para quem se interessa pela análise e interpretação dos acontecimentos fundadores da cultura brasileira. Lê-lo é escutar a contação ardente de uma utopia. E do nosso discurso sobre essa literatura lobatiana podemos elaborar melhor o nosso posicionamento a respeito da nossa pulsante linha evolutiva.

O “Poço do Visconde” é um passo a passo lúdico e profundo, escrito para preparar as crianças no entendimento da formação do petróleo como recurso finito e a sua importância para a humanidade. A movimentação da “Companhia Donabentense de Petróleo”, fundada na imaginação do sítio, para cavar o poço Caraminguá nº 1, como chamou a boneca Emília, é de grande preciosidade literária, com sofisticados detalhamentos e agradáveis curiosidades. Lobato relata em seu mundo idealizado que, quando o poço do sítio jorrou, ele viu os negadores do seu sonho ficaram com cara de asno. E sai inventando que em todo o País passaram a acontecer perfurações feitas por empresas destinadas a descobrir petróleo.

Lobato escancara sua fantasia em passagens que denunciam a presença de agentes secretos do truste, encarregados de espalhar descrença na população para que ninguém se mobilizasse e o Brasil ficasse eternamente a comprar petróleo fora. Ele não tinha conseguido encontrar petróleo capaz de sujar as mãos no dia da inauguração do poço, mas com a plataforma cavada na grandeza da sua literatura infanto-juvenil levou o Visconde de Sabugosa e toda a gente do sítio a provar sua persuasão íntima. “E aconteceu então um fato espantoso. O Brasil, que não tinha petróleo, que estava oficialmente proibido de ter petróleo, passou a ser o maior produtor de petróleo do mundo”.

Na solenidade de inauguração do poço do sítio, entre milhares de comensais, foi posta uma coroa de rosas com o seguinte letreiro escrito pelo Pedrinho: “Salve! Salve! Salve! Deste abençoado poço – Caraminguá nº 1, a 9 de agosto de 1938, saiu, num jato de petróleo, a independência econômica do Brasil”. Este ato imaginário torna-se plenamente real 68 anos depois com a entrada em operação da Plataforma P-50. A Petrobrás, criada por Getúlio Vargas cinco anos após a morte de Monteiro Lobato, passa a produzir 1,9 milhão de barris/dia para um consumo de 1,85 milhão de barris/dia.

A auto-suficiência do Brasil na produção de petróleo não é nenhuma panacéia econômica, porém chega em boa hora, quando o momento é crítico na acentuada situação de conflito vivida pelos principais países produtores do Oriente Médio. A Petrobrás, que esteve ameaçada de privatização há poucos anos, assume exemplarmente destacada envergadura internacional por sua excelência tecnológica, pela competência de seus profissionais e pelo grau de autonomia que distinguem o nível de independência, com relação a petróleo, conquistado pelo Brasil, nessa que é uma das mais poderosas indústrias mundiais.

O papel de Monteiro Lobato nessa conquista demonstra a força das idéias e dos ideais humanos na dinâmica do jeito de praticar sonhos. A auto-suficiência é resultante de muitas causas. No livro “Monteiro Lobato – Furacão na Botocúndia” (Editora Senac), Carmen Azevedo, Márcia Camargos e Vladimir Sacchetta sintetizam a história desse brasileiro que se empenhou com pertinácia em campanhas memoráveis para preparar o Brasil para o futuro. O capítulo sobre a epopéia lobatiana pelo petróleo começa com um recorte do livro “O Poço do Visconde” que diz assim: “A descoberta de petróleo no sítio da Dona Benta abalou o país inteiro. Até ali ninguém cuidara de petróleo porque ninguém acreditava na existência de petróleo nesta enorme área de oito e meio milhões de quilômetros quadrados”. Pode-se dizer que fazer acreditar foi a grande tarefa de Lobato para o que somos hoje.