A plenitude da realização
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno 3, página 3

Quinta-feira, 18 de Fevereiro de 2010 – Fortaleza, Ceará, Brasil

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Gosto dos livros que nos instigam a continuar humanos. “Por um simples pedaço de cerâmica” (Martins Fontes, 2009), de Linda Sue Park, é um desses livros. Basta percorrer suas páginas de coração aberto para convencer-se disso. É uma obra classificada como infanto-juvenil, mas recomendada a todas as idades, pois não há limite de idade para acreditar na plena realização, como fruto das insistentes procuras do espírito criativo.

É um livro de temperatura agradável, que emociona em ternas camadas de calor humano. A essência do ser aparece espalhada em leveza, respiração, amplitude, tensão e proximidade. Tudo em respeito à vida e à cultura de uma comunidade de ceramistas. Nesse ambiente social quase biológico é que se desenvolve essa história de exercício da consciência, com destaque para a função da sensibilidade, o papel da atenção ao outro, as fronteiras da convivência solidária e a construção do afeto.

A narrativa nos leva a querer prestar mais e mais atenção. É como se tivéssemos vendo e não lendo. O espaço entre o leitor e a história não exibe obstáculos, não apresenta distâncias. Os personagens do livro de Linda Park são claros até em suas dúvidas. Realizam a vida com esmero, distração, rudeza e amorosidade. Podem até não saber, mas sentem que viver exige força, determinação e coragem de existir com grandeza, mesmo quando se sentem fracos e frustrados.

O protagonista, um menino que tem como familiar apenas um amigo manco, é tudo o que há em termos de curiosidade vital e de maleabilidade da persistência no processo de conquista de um lugar em Ch’ulp’o, pequeno povoado coreano do século XII, localizado entre o mar e as montanhas e contornado por um rio “como uma costura bem feita”. Ele tem muitos atributos firmes, sedimentados pelo modo como viveu e desenvolveu sua percepção de mundo.

A autora estimula ainda todos os dons dos demais personagens: a filosofia do homem de uma perna só, conhecido como Homem-Garça, o perfeccionismo do mestre ceramista, os cuidados telepáticos da sua mulher e toda a sensibilidade de um povoado unido por senso de proteção comunitária e dividido em segredos da arte da cerâmica. Cada um e todos estão centrados no que são; não há bons ou maus, heróis ou vilões, apenas suas vidas insuficientes e ao mesmo tempo transbordantes.

A história de “Por um simples pedaço de cerâmica” acontece entre o querer necessário e a necessidade técnica na operação da vida. Impossível ao leitor atento não se encontrar em uma ou outra parte do perfil dos personagens. De um lado, um menino sonhando em aprender a fazer um pote e, do outro, o mestre ceramista aspirando em um dia receber uma encomenda real. Desejos calados. Dentre os requintes do texto de Linda Park destaco a forma emudecida como os personagens descobrem os sonhos uns dos outros e, recatados, tentam contribuir para que se realizem.

Essa é a questão que os vincula entre si e com o leitor, embora não seja a questão principal da obra. O livro enuncia desde o começo, e vai além do fim, a construção de relações entre diferentes e complementares na produção da grandeza humana. Por todas as páginas o leitor pode se pegar participando ou tentando se compreender em um ou outro dos atos comunitários e universais que constituem o enredo. Nessa experiência de seguir com a história, a pergunta que surge não se resume a “o que estou fazendo aqui”, mas “aonde podemos ir, caminhando juntos”.

Essas possibilidades de articulação profunda do leitor, enquanto personagem não declarado, com a essência humana que dá sentido à história é o que distingue um texto literário de qualquer outro. O leitor se percebe no personagem na medida em que o personagem se identifica com o leitor em um diálogo que nasce nas palavras, no que elas significam de revelação e elevação. O livro de Park é boa literatura porque nele o leitor se engrandece por graça e não por preceitos.

O livro surpreende em sua rebuscada simplicidade. Nele, até o desprezo é grandioso. O dia-a-dia do menino e do mestre ceramista é marcado por conflitos psicológicos em erupções comportamentais, realçadas no texto com muita habilidade, entre a impaciência de um e o fascínio do outro. Aliás, como já disse, Linda Park capricha no fato de todos os personagens terem posturas traçadas por dentro de suas almas, onde a comunicação muitas vezes se dá em palavras não pronunciadas.

Com aceitações que às vezes parecem recusas, eles se fortalecem na separação entre o fundamental e o supérfluo. São personagens que agradam, mesmo quando suas atitudes são desagradáveis. Isso nos dá quase uma responsabilidade de procurar entender, sem julgar, seus pensamentos e paixões, seus momentos de vergonha e de ressentimentos. Talvez essa atitude prove o quanto estamos na mesma página dos personagens, sentindo suas vibrações, o ressoar do viver de cada um, fazendo contato com o que somos, quer saibamos disso ou não.

Linda Park abre ao leitor uma paisagem e uma cultura, uma visão de si que se desenrola com o nosso olhar como se fosse o dela. Filha de migrantes coreanos ela mora com a família em Nova Iorque. Ler seu trabalho é quase vê-la escrevendo, como o menino da história, quando “incentivado pelo silêncio” observava por trás das árvores o mestre ceramista. Palavra por palavra, lembrança por lembrança, pesquisa por pesquisa, Linda está presente em “Por um simples pedaço de cerâmica” como se drenasse a argila, misturasse a cinza dos tons da cerâmica celadon e levasse tudo com cuidado ao forno coletivo da literatura.

A autora se faz percebida através de uma linguagem que exprime a emoção dos seres em descoberta da evidência do semelhante. Nota-se que ela teve o desejo de contar a história dos avanços contidos de uma criança e das dificuldades de permissão de um adulto. Se a minha dedução estiver correta, esse pode ser um dos pontos que torna o livro essencialmente humano: uma obra com um ethos bem resolvido, com contação fluida, humores transparentes e moralidade sem reservas.

Os ensinamentos do Homem-garça mostram o quão é salutar para a vida que respeitemos o olhar de quem, tendo ou não tido a oportunidade de ler as grandes obras do mundo, aprendeu a “ler o próprio mundo”. Ao menino que ele criou sob uma ponte, costumava transmitir com amor que “uma tradição respeitada pode ser mais poderosa do que uma lei”. Quando, por exemplo, o mestre ceramista, já idoso e mesmo precisando de ajuda, recusa o trabalho do menino, alegando não poder pagá-lo, o menino fica alegre por perceber que aquele “não” poderia ser lido como um “sim”. E era o sim que mudaria a sua vida para sempre.

A formação da consciência no exercício cotidiano é muito bem trabalhada por Linda Park por meio do jogo de pensamentos em conflito. Ser inteligente é muito pouco para quem deseja a fortuna de existir. O trecho em que o menino se delicia com a primeira refeição conquistada com o seu próprio esforço, mas esquece de guardar um pouco para o Homem-garça, leva-o a pensar no quanto é fácil ser ganancioso. E quando a gente pensa que o que importa é esse arrependimento, a narrativa diz que não, o que vale é saber o que o possível prejudicado acha com relação ao que ocorreu.

Em que pese o menino ter uma mudança na sua configuração familiar e de ter ganhado um nome próprio, o livro mostra com naturalidade que a plenitude da realização pode muito bem acontecer no anonimato, desde que ocorra como resultado do desejo sincero.