A potência dos pobres
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno 3, página 3

Quinta-feira, 16 de Setembro de 2010 – Fortaleza, Ceará, Brasil

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Confirmada a tendência de eleição da candidata Dilma Rousseff à Presidência da República, abre-se um novo ciclo de desafios na redução das desigualdades no Brasil, que é a integração dos pobres ao desenvolvimento. Com Lula, dentre várias conquistas históricas, os desafortunados passaram a ter algum poder aquisitivo, o acesso ao mercado de consumo e o início do trânsito pela diversidade cultural, mas tudo ainda muito vinculado à ordem das necessidades. O passo seguinte, num eventual governo Dilma, é o da criação das condições para a cidadania ativa, com os pobres podendo colocar seus desejos dentro do sistema representativo. Se, com Lula, o diálogo foi aberto com o povo, com Dilma, esse diálogo poderá ser estabelecido com a pessoa, enquanto agente do ato coletivo.

Reforcei esse meu sentimento ao ler o livro “Pobres, Resistência e Criação” (Cortez, 2010) da socióloga Monique Borba Cerqueira; um livro que abre novas angulações para a interpretação quase sempre unidimensional do universo dos pobres, centrado no discurso valorativo da impotência. A autora rompe com a linearidade dos diagnósticos que resumem a figura do pobre a uma vítima do regime de falta, quase sempre lastreados nas estatísticas de um mundo moral confinante. É comum a circulação de informações que mostram o que são os pobres, porém é incomum informações que revelem o que eles podem ser. O distanciamento do pobre do tipo social “ideal” leva à discriminação porque o realizar-se fora dos controles estabelecidos é radicalmente punido por desenvolver a sua potência criativa.

É duro ser tratado pelo que não se tem. Chamar alguém de “carente” é quase uma maldade, mesmo quando a intenção é fazer o bem. Lembro que certa vez uma amiga me contou com grande interesse que estava convidando as crianças “carentes” da praia onde ela tem uma casa de veraneio para dar a elas presentes pelo Dia da Criança. Com todo o cuidado para não cortar o entusiasmo dela, pedi licença para dar uma sugestão, no que ela aceitou de pronto. Então eu disse: Quando você for convidar essas crianças, não deixe jamais transparecer que a sua bondade está movida pela “carência” delas, diga que as está convidando para a sua casa porque você adora crianças, porque vê-las brincar lhe alegra, porque você se sente feliz com a presença delas. Daí, a doação dos presentes passa a realmente fazer parte da festa.

O que quer que me faça pensar assim encontra eco no estudo de Monique Cerqueira e sua proposta de um novo diálogo, no qual o pobre possa se colocar além dos movimentos inteiramente “úteis” da vida, para que a população se reinvente fora das fronteiras que caracterizam toda situação concreta de sobrevivência. Esta é uma obra que denota grande senso crítico a segregação dos “carentes” e seu esvaziamento de sentido na vida das pessoas pobres, restringindo-as aos afazeres rotineiros e ao ócio forçado. Quando a autora diz que “a pobreza não é apenas uma palavra destinada a designar, é o lugar de confinamento do pobre” (p. 23), ela oferece uma insuspeitada visão da dinâmica da dominação política e social pelo viés do simbólico. Considerar a potência do pobre é ter coragem de liberar as forças da vida para que se realize em caminhos irregulares.

A força moral que empurra o pobre à beira do abismo da autoconservação, inibe a sua capacidade de produzir vida na própria vida. Monique Cerqueira nos instiga a afetos e paixões, como modo de transvalorar o conceito de pobre para a dimensão de aproveitamento do seu potencial que o conjunto da sociedade poderá ter com o que pode surgir de novo e profícuo dessa parcela subjugada ao apagamento de si. Tudo o que vem do pobre tende a ser visto como repulsivo e por isso é mal tolerado. Do pobre só deve ser apropriado o que ele tem a dar para a manutenção de privilégios e concentrações de riqueza. Talvez por isso, a autora tenha recorrido a personagens do cinema e da literatura, não somente para facilitar a explicitação das entrelinhas de suas histórias, mas também para desarmar o nosso preconceito.

O livro põe nessa roda de conversas e reflexões três personagens emblemáticos que, embora vivam sob o signo da escassez, põem à prova a possibilidade de uma desobediência plural e criativa. Com a imagem docemente trágica de Carlitos, de Charles Chaplin; com a figura atrevida da sensual Gabriela, de Jorge Amado; e com a atitude de recusa da introvertida Macabéa, de Clarice Lispector, nos damos conta do que significa um cotidiano alheio às obrigações instituídas socialmente; o que significa desejar o bem-viver mesmo em situação de pobreza; e o que significa não se dar a conhecer ante a pressão dos códigos, regras e estereótipos que patrulham a vida comum. Frente a frente com os convidados do mundo da ficção nos sentimos mais à vontade para procurar entender, à luz das ciências sociais, os alcances nefastos do olhar de estranhamento dirigido aos pobres.

O pobre, na noção vigente questionada pela socióloga, é aquele para quem se planejam intervenções; aquele que está sempre em algum lugar de subtração chamado “pobreza”, onde resiste cercado pela dramaticidade do seu próprio sofrimento. A autora justifica sua busca de conhecimento da vida adversa por meio da ficção, argumentando que a ficção permite a aproximação e o transbordamento do sentir, em seu poder de indeterminação. “Todos os personagens analisados são atravessados por um fluxo de vida insuperável, uma desobediência sem limites; eles desconhecem qualquer enquadramento soberano” (p. 40). Assim, a escolha de Carlitos, Gabriela e Macabéa foi feita em função do que eles representam de potência humana no enfrentamento de contextos marcados por profunda ausência do necessário para viver.

É atraente como a autora traz para o real as reelaborações da arte e da literatura. Carlitos não teme o fracasso social porque não elabora a vida como desastre, mas como uma experiência de recriação fecunda; Gabriela supera o anonimato dos rejeitados não apenas por ter uma beleza que agride as mensagens estéticas da pobreza, mas por ter pleno desejo pela vida e, com isso, conseguir a inversão das potências tristes comprimidas na ideia de pobreza, tornando a existência um ato de obstinação e beleza; e Macabéa age como alguém que “não é”, desafiando a lógica da representação, o que a torna alvo de uma depreciação moral que a acua em sua invisibilidade. A sondagem daquilo que é singular em personagens de ficção que conseguem percursos fugidios à situação de pobreza, dá um toque diferencial à leitura do livro “Pobres, Resistência e Criação”. 

O caminho apontado por Monique Cerqueira para levar à integração do pobre ao desenvolvimento é o do reconhecimento e consideração da sua pulsão desejante. “Somente uma ética criadora é capaz de quebrar a modelagem do sujeito, torná-lo inventor, autônomo, apto a criar novas sensações, modos de agir, pensar, experimentar o próprio corpo, intensificando e explorando todas as suas possibilidades” (p. 150). No prefácio, o psicólogo Sylvio Gadelha sintetiza o livro como “um trabalho que toma a vida como aquilo que tem a potência de ativar o pensamento, e este como aquilo que pode afirmá-la incondicionalmente” (p.12). Esse princípio de vontade de potência quebra, segundo a autora, a ordem hierárquica que submete à vida, rompendo a neutralização da impotência, fazendo desaparecer o problema da infinita insuficiência e criando alternativas aos insustentáveis padrões de vida estabelecidos.