A publicidade fora do ar
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno 3, página 3

Quinta-feira, 28 de Fevereiro de 2008 – Fortaleza, Ceará, Brasil

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Pouca gente sabe, mas alguns comerciais dirigidos à criança estão saindo do ar por força de ações da sociedade civil organizada. O aproveitamento da credulidade infantil por parte das estratégias de marketing começa a não ser mais tão fácil quanto roubar doce de criança. A toxicidade da manipulação praticada pelos ladrões da imaginação embrutece e encurta a infância, causando grande incômodo social.

Estancar o avanço da publicidade focada no público infantil não é tarefa fácil nem para poucos. Muitos pais, educadores e pessoas interessadas no desenvolvimento sadio da infância ainda vêem a questão como utópica e, por isso, acabam não se mobilizando. Situação de semelhante distanciamento aconteceu há exatos quarenta anos, quando líderes políticos, econômicos e sociais, do chamado Clube de Roma, propuseram ao mundo um basta no ritmo desenfreado de produção, para que os recursos naturais fossem preservados.

A deseducação contida no estímulo à prática do consumo em excesso é um risco para a integridade humana e uma ameaça ao futuro do planeta. Neste aspecto, o encurtamento da infância, somado ao aumento da expectativa de vida, intensifica o nosso temerário poder de destruição. Por isso, mesmo parecendo romantismo, o combate ao consumismo na infância precisa ser enxergado urgentemente como um problema real e dramático.

É o que tem feito a equipe do Projeto Criança e Consumo (www.criancaeconsumo.org.br), do Instituto Alana, de São Paulo, criado em 2006 com o ousado objetivo de “acabar com toda a comunicação mercadológica dirigida à criança no Brasil”. Embora com pouco tempo de atuação esse projeto já moveu e mediou denúncias da sociedade, referentes à publicidade para crianças nos mais diversos segmentos de mercado, tendo, assim, obtido significativas conquistas de notificações e retiradas do ar de comerciais considerados abusivos, a exemplo dos casos que reproduzo a seguir, a título de ilustração:

Gomas e guloseimas

A Adams está as voltas com Inquérito Civil instaurado pelo Ministério Público paulista, por conta de um comercial do Bubbaloo Charada, no qual uma garota sente muito calor e tira a blusa ao mascar um “charada quente”, enquanto crianças ficam eufóricas ao verem a menina se despir. A psicóloga Maria Helena Masquetti, do Criança e Consumo, argumenta que esse tipo de insinuação “contraria o direito de toda criança a um desenvolvimento gradativo, que leve em conta o ritmo natural e próprio de cada uma na assimilação de novos valores e de suas mudanças biológicas”.

Corre em segredo de justiça, na Vara da Infância e Juventude de São Paulo, um processo contra a Nestlé, pela veiculação de comercial do chocolate Chokito, acusado de estimular crianças a usa dos subterfúgios da esperteza e da bajulação de adultos para obter um chocolate, como recompensa. Em seu parecer Masquetti deduz que a peça incentiva um comportamento falso para a obtenção de um objeto de desejo, colocando em risco a formação de valores.

Alimentos

Foi instaurado Inquérito Civil para apuração dos fatos e encaminhamento às providências cabíveis contra a promoção de Sucrilhos, da Kellogs, por ocasião do lançamento do filme Shrek Terceiro, no Brasil. A promoção “Sucrilhos – Grátis: 1 Shrek Voador” foi acusada de condicionar um brinquedo com o personagem do filme à compra do cereal matinal; e a “Sucrilhos Shrek Terceiro”, foi acusada de exagerar na associação do alimento ao apelo comercial do filme, à medida que o produto era apresentado em bolinhas verdes e marrons.

Está em tramitação na 4ª Vara Cível do Foro de Santo Amaro, em São Paulo, uma Ação Civil Pública em face da Pepsico, questionando a abusividade das promoções de venda dos salgadinhos Cheetos com surpresa – Hello Kitty e Cheetos Homem Aranha, configuradas como vendas casadas, prática não admitida pelo Código de Defesa do Consumidor. Além disso, esse tipo de promoção é considerado contra as boas normas da publicidade, por instigar o consumo desnecessário com base na motivação pela coleção de chaveiros.

A Bauducco é outra empresa acionada pelo Ministério Público que, embasado em denúncia admitida até mesmo pelo Conar (Conselho de Auto-Regulamentação Publicitária) se posicionou contra a promoção “É hora de Shrek”. A publicidade associava o recolhimento de cinco embalagens de quaisquer produtos da linha “Gulosos Bauducco” que, adicionadas ao pagamento de cinco reais, da à criança o direito de “ganhar” um relógio do filme.

Está tramitando em sigilo de justiça uma representação da Fundação Procon, de São Paulo, contra a Sadia, em virtude da promoção Mascotes Sadia, denunciada pela utilização de comandos imperativos e prática de venda casada, ao vincular a aquisição dos bonecos à compra dos produtos.

Calçados

O Ministério Público de São Paulo instaurou inquérito para apurar a denúncia contra o comercial das Havaianas Kids, acusado de estimular a erotização precoce, por apresentar forte apelo sexual em uma cena de praia. O parecer da psicóloga Maria Helena Masquetti, do Criança e Consumo, aduz que esse tipo de publicidade é prejudicial por estimular o interesse de tom erótico na fase de latência, quando a criança em situação normal canaliza suas energias para a socialização e para a aprendizagem.

O comercial da Sandália Moranguinho, da Grendene, estava tão acintoso com a associação de compra do produto ao ganho de uma certa Fantasticorda, que o próprio Conar recomendou a retirada do ar do comercial, por considerá-lo inadequado ao público infantil ao qual se dirigia.

Vestuário

No último Dia das Crianças, a C&A Modas realizou uma promoção, na linha de vestuários infantis, por meio da qual ofertava urso de pelúcia, mini-videogame e sorteio de prêmios, que variavam de chicletes a laptops. A promoção valeu-se do fato de a criança não possuir ainda os recursos necessários de percepção e julgamento desse tipo de manobra, para estimular o consumo excessivo de produtos associados a brindes e foi notificada pela abusividade cometida.

Teia eletrônica

Em razão de um banner de Sexy Clube inserido em seu portal, mesmo sendo sob o domínio de “Trem Encantado”, o IG foi acionado pelo Criança e Consumo e está melhorando os seus filtros de publicidade, a fim de evitar que peças impróprias a crianças e adolescentes sejam veiculadas em seus espaços comerciais. Está sendo formulado também um Termo de Ajustamento de Conduta com o hospedeiro do Habbo Hotel, página que mistura de maneira confusa jogo com prática comercial.

Composta por uma dúzia de itens, a Linha Xuxa de jogos eletrônicos, laptops, máquinas fotográficas digitais, games e plays, teve comerciais tirados do ar também por decisão liminar consignada pelo Conar. Maria Helena Masquetti, que avaliou oito desses comerciais, diz que “as crianças necessitam apoiar-se em modelos para se posicionarem no mundo e, portanto, é fundamental que os mesmos sejam adequados”. Ela dá ênfase às repetidas expressões de “meu” e “minha” utilizadas pela apresentadora em seu assédio consumista.

Esses avanços da sociedade civil em favor da infância me fazem lembrar os versos de inquietude social do poeta argentino Armando Tejada Gómez (1929 – 1992), que dizem ser honra da humanidade proteger os que crescem (…) evitando que naufraguem seus corações de barco, suas incríveis aventuras de pão e chocolate. Exatamente neste momento, diz o poeta, existe uma criança crescendo e é nosso dever observar as batidas apertadas do seu pequenino coração.