Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno 3, página 3
Quinta-feira, 10 de Julho de 2008 – Fortaleza, Ceará, Brasil

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Na programação do VI Festival Intercâmbio de Linguagens (FIL), que está sendo realizado desde 28 de junho até o dia 13 deste mês no Rio de Janeiro, as crianças votam para escolher o melhor espetáculo. A recomendação é que os pais não interfiram na decisão dos filhos. Foi assim que nos comportamos. E os meninos, com a desenvoltura de quem está amando as férias no Rio, optaram pela apresentação de “A rainha das cores” (Die königin der farben), um espetáculo do grupo alemão Erfreuliches Theater Erfurt que, ao vivo, combina música, teatro de sombras e pintura.

O cenário desse espetáculo é atraentemente simples. Todo preto. Do lado esquerdo, uma luz destaca o “músico da corte”, representado por Alexander Voynov e seu acordeão contador de histórias. Do lado direito, outra luz realça o brilho da “pintora da corte”, a atriz Eva Noell, que usa a velha técnica do retroprojetor, com acetatos, cartolinas, pincéis e retalhos de papéis coloridos, para tentar satisfazer os caprichos da “pequena rainha” temperamental. Na parte central uma tela branca em semicírculo expõe instantaneamente as cenas desenhadas por Eva, numa sincronia perfeita com as idas e vindas da figura transparente da rainha, manipulada pelo ator Paul Olbrich, por trás da cortina preta.

Essa característica de teatro de desenho animado, com recursos sonoros e visuais feitos na hora por artistas de atuação impecável, leva a platéia junto com a história, como se todos jogassem suas cores ao palco para salvar a pequena rainha da solidão do seu confuso mundo preto e branco. A protagonista não sabe o que quer. É mandona e mimada pelo músico e pela pintora. Mas tem um quê de desejos e sonhos coloridos, capaz de atrair o carinho do público, de contar com a participação do vermelho, do azul, do amarelo e do verde que a emoção de cada um pode oferecer como personagem.

A busca da felicidade é um ponto de fuga da condição humana. Por isso, acompanhar os esforços da boneca soberana por um mundo de cores e de alegria, mais do que uma abstração, passa a ser um ato de cumplicidade da platéia. Durante a apresentação observei a quietude envolvente dos meus filhos Lucas e Artur, em tempo real de encenação e cenografia. Eles têm em casa o livro “A rainha das cores” (Cosac Naify, 2003), da ilustradora e cartunista hamburguense Jutta Bauer. E gostam da maneira bem-humorada com que a autora trata com lápis de cera a questão das conseqüências em nossas escolhas.

A montagem da história, apresentada no FIL, valoriza o conteúdo lúdico e crítico da obra original e oferece elementos cênicos para a diversão de crianças e adultos. O momento em que a sempre insatisfeita pequena rainha exige que a “pintora da corte” encha a contragosto a paisagem com muitos sóis provoca os risos naturais do exagero. Não é à toa que ao se perceber num deserto escaldante, ela exige a volta do azul ondulado das águas que a refrescam. Faz tudo isso apenas dando ordens e mais ordens, sem se dar conta de que sua inconstância é irritante e perigosa.

O clima chega a um grau de tensão que as cores do mundo são eliminadas. Tudo vira uma espécie de musgo amarronzado que os meus filhos sussurrando apelidaram de “gosma-de-esgoto”. A coisa fica tão feia que ao se desentender com a “pintora da corte” o pacato “músico da corte” chega a abandonar, emburrado, o palco por alguns instantes. A “pequena rainha” percebe que suas exigências descabidas passam dos limites e chora um rio de intensas lágrimas coloridas, que se transformam na metáfora do diálogo da diferença pelo sentido mágico da relação entre as cores e o comportamento humano.

Essa adaptação de “A rainha das cores” guarda em si a tradução do sentido do próprio Festival Intercâmbio de Linguagens: é inovadora, recicladora, refinada, acessível, sinestésica, humana, universal e indicada para todas as faixas etárias. Já que “a importância de uma coisa há que ser medida pelo encantamento que essa coisa produz em nós”, como alerta a citação do poeta pantaneiro Manoel de Barros, reproduzida no folder do evento, esse festival, no dizer da sua idealizadora e curadora, Karen Acioly, pretende apurar e aprofundar experiências e produzir integração por meio de uma profunda e diversificada troca de encantamentos.

Karen Acioly, que é diretora do Centro Municipal de Referência do Teatro Infantil, propõe que o festival seja uma oportunidade de mergulhos em novas, ousadas, variadas e estimulantes curiosidades cênicas, oriundas de diferentes lugares do mundo. Em sua sexta edição o FIL reúne nove companhias internacionais e seis nacionais, em dezesseis espetáculos apresentados durante quinze dias em sete palcos da rede privada e municipal de teatro do Rio de Janeiro. Além de apresentar muito do que de melhor se produz em artes cênicas no Brasil e no exterior, o festival promove debates e trocas de experiências entre artistas, educadores, pais e filhos.

No grande encontro, patrocinado pela Petrobrás e Oi Futuro, com apoio da Secretaria das Culturas do Rio, Consulado Geral da França, Ministério das Relações Internacionais de Quebec e da Bélgica, Embaixada de Israel e FILO, Festival de Bonecos de Belo Horizonte, acontecem mostras que reverenciam o espetáculo circense tradicional e apresentam o olhar brasileiro sobre o novo circo, bate-papo de autoras sobre dramaturgia feminina, cinema, dança e a produção de um mini-espetáculo, compartilhada entre companhias nacionais e estrangeiras.

A arte brasileira mescla, dentre outras, linguagens de picadeiro com coreografias de balé clássico e mímicas, em “Memórias de um Tigre de Circo”, com Boris Ribas e Inez Petri, e o “Circo Dux”, uma tríplice e bem-humorada articulação de acrobacias de Cláudio Parente, palhaçadas de Fabrício Dorneles e malabarismo de Lucas Moreira. Sem contar com trocas e combinações de experiências, como a que resultou no espetáculo “A Cabra de Monsieur Seguin”, na qual brasileiros e canadenses se unem para contar como uma cabra manhosa procura convencer o lobo a não devorá-la.

A participação internacional trouxe uma série de atrações, que vão da habilidade dos trapezistas de mãos de “Manovia” (Itália), que contam com poesia e arte circense uma pequena história de amor, do grupo Girovago e Rondella, a “Prises de Bec” (França), um concerto tocado com vasos de barro, pedras lascadas, cano de pvc, garrafa pet desfiada e um sax feito com regador de plantas, que dialogam com um alaúde e um clarinete.

Se a intenção é “compartilhar aventuras e vivenciar experiências inesquecíveis que apurem nosso olhar, ouvido, tato, coração e alma”, através de múltiplas linguagens, de diferentes lugares, posso dizer que pelo que deu para ver por esses dias, o FIL tem cumprido o relevante papel de provocador do imaginário. Estou escrevendo esta coluna no aconchego do Solar Imperial, em Petrópolis, mas escuto nos corredores do belo casarão de 1875, o cantarolar e o assobiar dos meus filhos: “Fil fil, fil…” como toca na abertura dos espetáculos do Festival Intercâmbio de Linguagens.