A redescoberta da palavra
Artigo publicado no Jornal O Povo, Caderno Vida & Arte, página 6

Quarta-feira, 12 de Maio de 1999 – Fortaleza, Ceará, Brasil

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O desencontro não poderia ser maior, nem mais emblemático. Enquanto fundamos uma nova ordem baseada na sofisticação de máquinas capazes de processar e transmitir dados em velocidade e qualidade esplêndidas, perdemos o foco do sentido de todo esse aparato de criação genial. Chegamos a uma espécie de era do homem inútil, onde não conseguimos distinguir quem é acessório de quem. Estamos quase atingindo o clímax de não precisarmos mais de nós mesmos para existirmos.

Movidos pelo ritmo acelerado da sobrevivência em um padrão marcado pela velocidade e pouco tempo para meditação, entramos de ponta no contexto dessa senzala de casa grande virtual. A nova linguagem finge que prescinde da palavra — menos para ler alguns manuais de instalação e uso de programas auto-explicativos. Desesperados em não ficar à deriva, investimos todos os nossos esforços na busca de qualificação, limitando-nos a exigências operacionais. Os mais privilegiados secam os olhos ante o poder sugestivo da rede mundial de computadores, na prazerosa sensação de que o mundo passou a caber dentro de suas casas, como um bichinho de estimação.

O exagero dessa relação é um fator limitante para a máquina e para o homem. Com a mente humana subordinada aos encantos da eletrônica, a fronteira do desenvolvimento é bem mais próxima do que se imagina. O léxico torna-se mais e mais rudimentar e vamos perdendo a capacidade de construir um discurso coerente e renovador. O ato de ler foi dessacralizado e o livro não é mais o único caminho para a instrução e a distração. São inumeráveis as ofertas recreativas e informativas, com vantajosas e cômodas definições cinéticas. Apesar de aguçar o sentido crítico e exercitar a imaginação a partir da representação do universo simbólico de cada pessoa, a leitura passou a ser percebida como algo enfadonho e desnecessário.

Todo o instrumental posto à nossa disposição pelas inovações tecnológicas terá muito mais valor quando descobrirmos que precisamos da palavra como expressão das idéias e pensamentos insubstituivelmente humanos. Quem não perceber essa sutileza terá jogado fora todo o empenho na procura de ser tão perfeito quanto um computador. Somos seres imperfeitos por não obedecermos a qualquer lógica de conclusão. Não merecemos o incentivo à leitura por utilidade curricular, como é comum acontecer. O potencial de encantamento e de iluminação que a leitura nos possibilita, precisa tornar-se hábito pelo prazer da movimentação do conhecimento a partir do nosso imaginário.

Nunca esqueci o sentimento mágico que tomou conta da minha emoção mais profunda quando percebi que estava lendo. A entrada no mundo da decodificação da língua, através da palavra escrita, é incomparável. Lembra o primeiro instante em que a gente nota a figura em relevo escondida no jogo mimético daqueles cartões de visão 3D. Mas é muito e muito mais. Eu estudava nas Escolas Reunidas de Independência e a cartilha contava a história dos Três Porquinhos. Ali me reconheci como um ser coletivo, capaz de pensar junto, de integrar o repertório comum, de esgarçar a alma pela fenda de um novo olhar.

O inquieto Ziraldo costuma dizer que “ler é mais importante do que estudar”. Não é à-toa que ele lançou, em Belo Horizonte, uma excelente revista de cultura, cujo título é Palavra. Seu argumento é que, além de ser através da palavra que nascem todas as idéias do homem, “a palavra é o átomo da alma” e, sem comprometimento semântico, é a matéria-prima e seu próprio instrumento. Monteiro Lobato (1882 – 1948), na cosmogonia solitária dos visionários, foi o precursor do fortalecimento da palavra na construção da brasilidade. Aliás, o cuidado de Lobato em tornar, com a sua qualidade literária e estilo inconfundíveis, atraente as mais diversas disciplinas dirigidas a crianças, antecipou-se em mais de meio século ao best-seller “O Mundo de Sofia”, do norueguês Jostein Gaarder que, com muita desenvoltura, narrou de forma lúdica a história da filosofia ocidental.

Temos poucos espaços para a difusão da boa literatura. As prateleiras das livrarias estão infestadas de livros esotéricos, best-sellers produzidos sob encomenda e uma variedade infindável de livros de auto-ajuda mística e de fórmulas de sucesso. As estatísticas do setor livreiro demonstram que a recessão pouco tem afetado as vendas, o que revela a existência de um núcleo da elite econômica e intelectual imune a crises e, simultaneamente, que o restante da população continua dependendo das compras oficiais de livros para distribuição nas bibliotecas escolares. Quem realmente está tendo tempo e gosto para ir às bibliotecas é uma incógnita. Uma incógnita sobre cuja grandeza pesa o pêndulo da palavra como força transformadora.