A representação da honestidade
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno 3, página 3

Sábado, 28 de Maio de 2005 – Fortaleza, Ceará, Brasil

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A sociedade brasileira está sofrendo um ataque dramático em sua integridade cultural. O terreno social, com suas linguagens, tradições, crenças e condições históricas tem sido, por conveniências conjunturais, minado pela indução na opinião pública de factóides trabalhados para dar a impressão de que todas as convicções são transmutáveis. Escândalos relacionados à pirataria, pagamento de propinas, licitações viciadas, abuso eleitoral de poder econômico, sonegação fiscal, evasão de divisas, obtenção fraudulenta de empréstimos subsidiados e apropriação indébita de verbas públicas aparecem todos os dias como se fossem novidades provocadas simplesmente pela soberba antropofágica de certas lideranças petistas.

Em que pese a verdade percebida por conta da influência dessa debilidade interna do partido do presidente Lula, a crise da representação da honestidade estabelecida no Brasil tem tido a colaboração negativa de boa parte das autoridades sociais do País. A população se sente desprotegida em seus direitos civis diante da desfaçatez de parte expressiva da justiça, da academia, dos parlamentos, dos executivos públicos, da mídia e do sistema econômico-financeiro. A corrupção não é um vício novo e, com maior ou menor grau, está presente em todo lugar do mundo. Mesmo cambaleante, o novo tempo democrático brasileiro tem revelado oportunidades de exposição pública de fragmentos da madeira podre do estrado de sustentação das forças internas e externas que ainda mandam de fato no País.

Na condição de participantes diretos da vida brasileira, na maioria das vezes as pessoas não têm como tomar distância para ver as coisas acontecerem e acabam susceptíveis as incontinências das leituras distorcidas feitas por interesses não revelados. Essa situação tende a desresponsabilizar os não envolvidos pelos fatos, como se a necessidade de seriedade fosse uma prerrogativa dos detentores de papéis-modelo que, via de regra, vêm deformando estupidamente a própria imagem. Buscar respostas para essa crise de significado de honestidade é um fator decisivo para a coesão social, considerando que a compreensão que temos dos nossos valores é o que determina a nossa ação cotidiana de vigilância dos poderes constituídos.

A honestidade não é um valor restrito a moral; ela se localiza no plano universal da ética e está presente de diversas maneiras na evolução da raça humana. Crer e descrer é uma questão ontológica. Da mesma forma que acreditamos na honestidade como um parâmetro de dignidade, podemos ser “convencidos” pelas circunstâncias a mudar de referência na nossa contínua busca da felicidade. A sensação de acumular respeito e reconhecimento como elementos de orgulho individual e coletivo é contaminada pela suposta delinqüência generalizada das autoridades, vulnerabilizando as instituições e empurrando as pessoas comuns para a angústia do medo social. E muita gente começa a esconder a honestidade para não passar atestado de burrice. Valores irrefletidos enfraquecem a voz da nossa consciência comunitária e aumentam a força do receio da desaprovação. A rejeição é um temor antigo da humanidade.

Ser honesto está associado à interpretação da vida em sociedade e a seu espírito de conservação. Entretanto, na briga pelo poder, no vale-tudo do ringue das dominações, quanto mais o sentido de honestidade for dilacerado mais infalível será o cinismo na vida pública. A interação entre os fatores psíquicos e as condições sociais, econômicas e políticas da nação brasileira pode estar sendo adulterada tanto como reação à ousadia da autodeterminação do Brasil em sua política externa, quanto por conta de um irracionalismo eleitoreiro local, capaz de apostar na obscuridade só para fazer promessas de luz. A quem interessaria a instabilidade causada pela falência do senso de honestidade? Quem estaria disposto a “matar a vaca para se livrar dos carrapatos”? Esse processo desorganizador merece uma discussão aberta pela ótica da sociedade civil como motor permanente da democracia.

As interpretações invasoras querem nos convencer de que a desonestidade é um problema antropológico da mestiçagem, desvirtuando o que temos de maior diferencial enquanto sociedade que é o princípio ativo futurista da mistura étnica. O Brasil está ocupando cada vez mais o seu lugar de líder continental e isso incomoda significativamente as potências imperialistas. No mês passado, o jornal inglês Financial Times, advertiu os investidores internacionais que uma “corrupção endêmica assola o Brasil”. Deduções precipitadas como essa tendem a enfraquecer a nossa conquista por excelente imagem externa e a patrocinar interesses internos das minorias contrariadas com a opção de uma gente que, com todas as dificuldades, busca a superação da iniqüidade social por meio de uma paciente e pacífica travessia política.

As pessoas são honestas, querem ser honestas e lutam para isso, porém estamos pobres de representação da honestidade. A cultura brasileira está exposta a uma acusação insensata. Nesse embate entre forças de ascensão e de descensão precisamos aprender a desvendar os casos de corrupção sem ser contaminados por eles. Não podemos nos deixar confundir pelas evidências de depravação social que estão sendo expostas como se a corrupção estivesse aumentando no País. A lucidez é filha do caos. Logo, essa conturbação de significados faz parte da transformação. Contudo, há de ser posto algum limite no abuso da boa índole da gente brasileira. E isso depende de exemplaridade por parte daqueles que levam consigo a responsabilidade dos papéis-modelo na nossa sociedade.