A segunda via da identidade do PT
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno 3, página 3

Quinta-feira, 13 de Dezembro de 2007 – Fortaleza, Ceará, Brasil

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Estamos na travessia de uma zona de sombras na política brasileira. O próximo ano já chegou e a reflexão menos emocionada que deveria ser feita no âmbito partidário, para superação dessa turbulência, é naturalmente adiada diante da disputa pelo poder, anunciada no calendário eleitoral. Entretanto, a sociedade que colocou e mantém Lula na Presidência da República por meio dos instrumentos democráticos, contra todos os arranjos tradicionais da política brasileira, merece ser observada com mais cautela pelas lideranças que ainda têm o propósito de fazer política com seriedade.

Em 2010 o presidente Lula encerrará o seu segundo mandato. Dos quadros do Partido dos Trabalhadores ou não, o novo mandatário da República precisará de um PT reabilitado, para auxiliá-lo na governabilidade, como aliado, ou mesmo, mais bem preparado para atuar no campo da oposição. A democracia brasileira pede que o PT evidencie a lição que aprendeu nos oito anos de erros e acertos em que esteve no poder. Será decepcionante se essa demonstração for apenas de acomodação. O aperfeiçoamento do processo democrático no País não pode se dar ao luxo de desprezar a aptidão de inquietar de um partido que sempre foi inquietante.

A elite emergente e apressada, constituída por uma porção de petistas desastrosos, causou muitos danos ao partido e à política brasileira ao ocupar o vácuo deixado pela elite retrógrada, herdeira das nossas distorções coloniais. É inconcebível que os falsos esquerdistas, aqueles que ao chegarem ao poder se revelaram inconseqüentes, não por equívoco tático, mas por ausência de princípios éticos, e que passaram a fazer o mesmo de tudo o que há de nefasto e degradante na prática política, continuem preservados nos quadros de direção do partido.

O novo momento do PT passa por um desafio colocado pela sociedade brasileira a todos os partidos: acabar, ou pelo menos reduzir, o disparate de ter o povo politicamente mais adiantado do que as siglas partidárias que o representam. O dinamismo social e político que se desenrola no País atesta um fortalecimento do poder civil, cuja evolução os partidos não estão conseguindo acompanhar. O aprimoramento da nossa democracia empírica, mesmo intensamente traçado pelos movimentos sociais, pelas organizações não-governamentais e por toda sorte de manifestações comunitárias e solidárias, necessitam da articulação com partidos políticos capazes de responder a essa questão.

O Brasil é um lugar de maravilhosa complexidade social. As circunstâncias políticas que atravessamos são de extrema delicadeza. Os apartados, mesmo em situação precária, passaram a ter postura afirmativa e a influir na vida cultural e política do País. Enquanto isso, a elite tradicional, com todas as condições oferecidas pelo emolumento das desigualdades, ao invés de propor soluções de estabilidade, se mobiliza apenas para não perder privilégios. Entre esses dois movimentos têm surgido bolhas indefinidas de poder, que nem de longe estão sendo devidamente trabalhadas pelos partidos políticos.

O governo Lula vem contribuindo inegavelmente para criar e ampliar as condições de irrigação econômica que atenuam a nossa vulnerabilidade social. Essa determinação do presidente obteve como contrapeso a intensificação da participação política no campo social. É isso que os partidos sérios precisam enxergar. O povo brasileiro alcançou um estágio de expectativa da razão pública, que requer respostas partidárias menos burocráticas, menos ruminantes. É o que está acontecendo com o PT, que perdeu a identidade ao se perder no que significa sair da oposição para ser situação em dimensão nacional.

O PT escapou temporariamente dos escândalos a que foi exposto por alguns de seus dirigentes e militantes insensatos, porque contou com a figura indelével do presidente Lula e tem uma história que não pode ir para o lixo assim sem mais nem menos. Em quase três décadas de existência, o Partido dos Trabalhadores tornou-se uma das principais referências partidárias do País. A capacidade dos seus líderes na condução de variadas tendências foi identificada pela sociedade como uma habilidade apropriada à condução de um País formado pela vigorosa força de atração cultural.

O fato é que olhando os balcões de achados e perdidos da política, a identidade do PT foi extraviada e o partido precisa de uma segunda via para continuar se apresentando como viável, nesse momento em que os apelos dos mais diversos segmentos sociais estão devidamente arrolados na agenda política nacional. Isso aumenta a responsabilidade e o dever de consciência por parte dos seus filiados, no que diz respeito às eleições internas a serem realizadas no próximo domingo, dia 16, para que escolham dirigentes afinados com os novos tempos.

No que se refere ao Ceará, tirar a segunda via passa por uma mudança dos responsáveis pelo extravio da primeira. Nesta possibilidade de escolha o PT não pode, por exemplo, perder a oportunidade de afastar democraticamente um dirigente como o Joaquim Cartaxo, que, apesar de ser uma incógnita do ponto de vista dos interesses que realmente defende, consegue se manter na direção do partido desde a década passada. Permanecer com esse tipo de dirigente é dar uma rasteira nos passos seguintes, quando a questão posta pelo futuro passa pelo restabelecimento da confiança das pessoas nos propósitos do Partido dos Trabalhadores.

A segunda via da identidade do PT deve ter o carimbo, a marca d´água e a assinatura do socialismo participativo. Não há partidos feitos apenas de políticos intocáveis. Um partido não é uma panacéia. O que me faz refletir sobre a importância do PT é porque ele é uma espécie de filho prodígio da redemocratização brasileira. Há uma obrigação histórica na sua reafirmação dentro do cenário político nacional. A vida política é uma construção social e o País precisa de partidos com consistência programática para jogar o jogo democrático.

A resistência a um novo contrato político, manifestada por parte dos petistas que estão adorando estar no poder a qualquer custo e de qualquer jeito, também faz parte da moeda de troca, cunhada na sensação oportunista de que é preciso se dar bem enquanto não cai. Quem faz política com honestidade de crença, com consciência, não faz com imediatismos. Os novos dirigentes do PT, assim como de qualquer partido que respeite a arte da política, precisam estar preparados para pensar no longo prazo, na formação dos seus militantes e no entendimento mais profundo das características da nossa diversidade única.

O Brasil tem tudo para avançar democraticamente. O passo seguinte a ser conquistado será aquele em que a maioria das pessoas tratarão de se co-responsabilizar pelos efeitos de suas escolhas. O feixe de possibilidades é imenso, mas algumas providências, como a de cuidar para que os partidos acompanhem a evolução política da nossa sociedade civil, precisam ser tomadas. A tarefa a ser enfrentada é muito grande e muitas vezes antinômica. É trabalho que se estende da necessidade de calibragem justa entre o agronegócio e a agricultura familiar, aos problemas de excesso de oferta de imóveis de alto padrão, com exagerado déficit de habitação popular. Valores e contravalores estão revolvidos em um contexto retumbante de sociodiversidade fecunda.