A sintaxe da lembrança
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno 3, página 3

Quinta-feira, 02 de Abril de 2009 – Fortaleza, Ceará, Brasil

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Tenho a inclinação para gostar de quem lê a vida amando. Isso me leva a dar mais preferência a Rubem Alves do que a José Saramago, embora literariamente admire os dois. Enquanto Saramago se pergunta se certas recordações são realmente suas, Rubem Alves assume como suas não só as histórias que viveu, mas também muitas daquelas que apenas ouviu, contadas por outras pessoas. Essa abordagem me agrada porque diz que as nossas histórias são as que ficam em nós, as que nos ofertam lembranças.

Ambos são de origem humilde e nasceram em lugares distantes dos centros urbanos. Rubem Alves, em Boa Esperança, interior do estado de Minas Gerais; Saramago, em Azinhaga, na província de Ribatejo. Ambos migraram com suas famílias em busca de novos horizontes. Um, foi morar no Rio de Janeiro, o outro, em Lisboa. A diferença entre Saramago e Rubem Alves é que as recordações amargas da dureza da vida na infância fizeram do escritor português um cético diante do encantamento.

Rubem Alves afirma em seu livro “Ostra feliz não faz pérola” (Planeta, 2008) que o ato criador, seja na ciência ou na arte, nasce sempre de uma dor, como acontece com a ostra quando, não podendo se livrar do grão de areia que invade a sua concha, se livra da dor revestindo o grão e produzindo a pérola. Adianta, porém, que no caso humano não precisa ser necessariamente uma dor doída, pois muitas vezes a dor aparece como uma coceira, uma gastura na mente, que tem o nome de curiosidade. Por força da dor, tanto Saramago quanto Rubem Alves passaram a produzir pérolas. Um, movido por angústias revividas e, o outro, por ludicidade renitente.

Quando Saramago fala da sua terra natal, refere-se a uma aldeia pobre e rústica, de casas baixas, rodeada pelo cinzento prateado dos olivais, oscilando entre os excessos do verão e do inverso. Essa paisagem, mesmo sombria, está dentro dele e ele se lamenta de não mais tê-la, pois as oliveiras foram substituídas por campos de milho transgênico. “Não estou a queixar-me, não estou a chorar a perda de algo que nem sequer me pertencia, estou só a tentar explicar que esta paisagem não é minha, que não foi neste sítio que nasci, que não me criei aqui”, reclama em “Pequenas Memórias” (Companhia das Letras, 2006). Esse desabafo poético de Saramago me faz lembrar as dores que Drummond (1902 – 1987) tinha de Itabira, cidade desfigurada pela exploração do minério de ferro, que se resumiu a uma fotografia em sua parede.

A sensação de que ter nascido onde nasceu pode ter sido a consequência de um equívoco do acaso, maltrata Saramago e ele produz pérolas para se livrar da dor. Referindo-se ao rio Almonda, que passa ao lado de seu povoado natal e se encontra com o Tejo a um quilômetro depois, ele reforça sua desdita: “A terra é plana, lisa como a palma da mão, sem acidentes orográficos [montanhosos] dignos de tal nome, um ou outro dique que por ali se tivesse levantado mais servia para guiar a corrente aonde causasse menos dano do que para conter o ímpeto poderosos das cheias”. Para Saramago, a paisagem é um estado da alma: “A criança que eu fui não viu a paisagem tal como o adulto em que se tornou seria tentado a imaginá-la desde a sua altura de homem. A criança, durante o tempo que o foi, estava simplesmente na paisagem, fazia parte dela, não a interrogava”.

Em situação semelhante, Rubem Alves fala de Boa Esperança, com olhos de contemplação: “Deitada entre o verde dos campos e o azul do rio Grande, que a represa de Furnas transformou em mar.” Não podendo se livrar da hidrelétrica que alterou o cenário da sua infância, ele resolveu o problema levando para casa uma pedra de lembrança, uma pedra comum, mas que certamente estava por ali há milhões de anos. Ao levar a pedra para casa, “imóvel, mas não inerte”, como escreveu Francisco Brennand na entrada da sua oficina de esculturas em cerâmica, levou consigo um tiquinho daqueles milhões de anos e o vale que ela guarda dentro de si. “Quando olho para ela lembro-me da serra e do vale”, declara em “O velho que acordou menino” (Planeta, 2005).

Mesmo fazendo referência à criança escondida dentro de si, como um certo ser que foi e que deixou encalhado algures no tempo, Saramago tem vivas lembranças pelos olhos adultos que herdou do menino triste. Tomando por base a metáfora da ostra de Rubem Alves, eu diria que o pequeno Zezinho escapou porque sofria a perseguição de monstros imaginários. No âmbito da cultura da infância eu diria que os dois autores certamente enfrentaram pesadelos comuns, mas que Rubem Alves aprendeu a recuperar a respiração com o poder reconstrutor da memória feliz. O que os distingue na sintaxe da lembrança é o ângulo com que passaram a observar o lado invisível da vida.

A psicóloga Maria Helena Masquetti me contou por esses dias que tomou consciência do quanto o invisível pode ser palpável, quando, ainda garota, acompanhou a mãe e os irmãos em uma visita a uma tia no interior. O lugar era distante e em muitas ocasiões elas tiveram que trocar de transporte e parar para perguntar sobre o caminho. Conversa vai, conversa vem, e a mãe dela acabou contando para duas senhoras da fazenda para onde se dirigiam, que há 20 anos não via a irmã. As senhoras, que conheciam de vista a tia da minha amiga Maria Helena, caíram em prantos, uma delas dizendo: “Ah, meu Deus! quanta alegria dona Chiquinha vai sentir de ver a senhora!”. Essa mulher falou com os olhos de Rubem Alves e não com a voz de Saramago.

A estética da lembrança em Saramago estaria mais para a de Lamartine Babo (1904 – 1963), se tomarmos como referência a história da música “Serra da Boa Esperança”. Pouca gente sabe que essa canção foi feita para uma mulher que existia apenas em fictícias cartas amorosas, destinadas ao compositor, como uma “pegadinha”. Traído pelos próprios sonhos o poeta viajou ao interior mineiro para se encontrar com uma grande decepção. “Foi então que ele viu a Serra da Boa Esperança ao longe e a sua paixão se agarrou a ela”, conta Rubem Alves, lembrando que foi a tristeza de amor do Lamartine que transformou aquela cidadezinha desconhecida em uma canção.

Essas histórias de ostra que incomodadas com a dor produzem pérolas são mesmo muito atraentes. Citando Nietzsche (1844 – 1900), como gosta de citar, Rubem Alves reverbera uma pergunta do filósofo germânico: “Por que os gregos, sendo dominados pela tragédia não sucumbiram ao pessimismo?” E Nietzsche responde: “Eles não se entregaram ao pessimismo porque foram capazes de transformar a tragédia em beleza”. Talvez por isso Rubem Alves seja otimista e queira tanto que os pássaros cheguem até a área ajardinada do oitavo andar do seu apartamento. Ele não se conforma que os homens sejam os seres que perderam a confiança dos pássaros. Por isso está começando a aprender a ouvir até os pássaros que não cantam, como os beija-flores.

Curiosamente eu tinha lido isso no livro de Rubem Alves, antes de ir ao Mondubim, no domingo passado, bater papo com o Estrigas e a Nice. Sentados na varanda da casa-museu dos dois queridos artistas plásticos noventões, um passarinho, conhecido por seu tilro como Relógio, começa a fazer um ninho no pé de pitanga, a dois metros das nossas cadeiras. O casal, de asas cinza, papo amarelo e bico pontiagudo se revezava na construção do lar como se não estivéssemos ali, tão próximos. Naquele instante, senti as asas das palavras de Rubem Alves e, para completar, um sabiá chega a um metro dos nossos pés para comer tranquilamente uma pitanga caída no chão.