A TV e os limites da liberdade
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno 3, página 3

Sábado, 10 de Dezembro de 2005 – Fortaleza, Ceará, Brasil

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Dentre os valores constitucionais instituídos com a finalidade de dar garantia ao Estado Democrático de Direito está o direito à liberdade e o respeito aos direitos sociais e individuais. Os parâmetros disciplinadores das relações em sociedade deveriam valer para todas as instâncias abertas da coletividade. Entretanto, temos tido no Brasil uma abominável aproximação da “sociedade em simulacro da televisão” com a “sociedade sem-vida-social” que se tornou dependente da TV, pelo viés do empobrecimento ético e estético. Esse encontro de rebaixamento da dignidade humana, com entrega em domicílio, derivou para uma multiplicação de exceções.

Para refletir sobre esse assunto, tenho procurado recorrer a situações que possam balizar a minha percepção, sem cair nas armadilhas do receio de estar defendendo qualquer tipo de censura a manifestações da criação intelectual. Uma pessoa nua em plena praça tende a atrair curiosos, embora seja presa por romper com um código elementar de convivência social. Essa mesma pessoa, nua do mesmo jeito, em uma praia de naturalistas, seria apenas mais uma freqüentadora de um ambiente no qual andar despido não resulta em qualquer restrição. Nas praças, que são espaços públicos irrestritos, não se vê qualquer aviso de que é proibido andar sem roupa, simplesmente porque essa é uma informação desnecessária ao senso comum. Nas proximidades das praias de nudismo normalmente colocam-se placas que possam privilegiar as pessoas afeitas a andarem ao ar livre sem roupas e ao mesmo tempo prevenir as não adeptas desse tipo de intimidade no convívio social.

Os avisos colocados nas áreas consideradas fora dos padrões gerais não são taxados de censura, muito pelo contrário, servem simplesmente para dar clareza às escolhas de determinados grupos sociais. Transpondo essa situação para o que chamo de “sociedade em simulacro da televisão”, sempre que se fala em classificação indicativa da programação, surgem argumentações desonestas no sentido de que os programas ancorados na baixaria exibem o que o telespectador quer ver. Nessa mesma linha de raciocínio perverso está a ardilosa dedução de que os incomodados que desliguem seus aparelhos de televisão. Dizem isso como se houvesse uma fartura de opções de fontes de informação e de entretenimento para a maioria dos brasileiros.

Quando, em junho deste ano o apresentador João Kleber (RedeTV) foi eleito a mais degradante programa da tevê brasileira, pelo movimento “Quem financia a baixaria é contra a cidadania” (www.eticanatv.org.br), declarou em entrevista a Folha de São Paulo que percebe na reação da sociedade organizada ao seu show de escatologia, uma tentativa de “interferir na liberdade de criação e de expressão artística, como que querendo impor ao telespectador o que ele deve ou não assistir”. Por força de pressão cidadã, no último dia 14 de novembro a sede da emissora foi lacrada após descumprir uma ordem judicial que determinava a suspensão do programa de João Kleber. Passou mais de um dia sem transmitir sinal pela rede aberta e somente retornou ao ar quando resolveu pagar R$ 600 mil de indenização, dos quais uma parcela servirá para custear programas que valorizem os direitos humanos, a serem transmitidos pela própria RedeTV em canal aberto.

Muitos segmentos sociais têm despertado para essa parte nociva da TV e reagido com pragmatismo. A semana de 24 a 30 de abril do próximo ano está sendo agendada por pessoas, empresas e entidades públicas e privadas para ser um período especial de conscientização do grande problema que se tornou a “sociedade em simulacro da televisão”. Há um movimento (www.desligueatv.org.br) que ganha corpo no Brasil com a proposta de criar um espaço de discussão da excessiva utilização da televisão e seus efeitos relativos a distúrbios alimentares, psicológicos e sociais. Na semana do desligue a TV, essa ação de cidadania propõe alternativas de uso dos parques com manifestações artísticas e esportivas, caminhadas ecológicas, passeios, visitas a museus e a livrarias como centros de convivência, estímulo à leitura e a conversa.

No texto “Teleantevisão”, escrito por Millôr Fernandes para o “Desligue a TV”, o louvável pensador brasileiro chama a atenção daquelas pessoas que estão se sentindo enfastiadas, com a sensação de que a vida é vulgar e achando que a existência perdeu todos os valores, para que não se desesperem. “Sem televisão você voltará a ver a vida pelo lado de fora (…) Sem televisão seus filhos púberes não aprenderão que o objetivo da existência é parasitar os mais velhos o tempo todo, enquanto lhes colocam o dedo na cara, acusando-os disso, daquilo e sobretudo daquiloutro (…) Sem televisão os pais não se defenderão dos filhos botando a culpa na sociedade (…) Sem televisão você não se sentirá mais derrotado se não levar vantagem em tudo (…) Sem televisão seus filhos aprenderão que o erótico não é só transar feito cachorro (…) Sem televisão sua casa será de novo um lar”.

Há uma promessa de que até março de 2006 o Ministério da Justiça lance um pacote de medidas regulamentando a classificação indicativa dos programas de televisão. As emissoras serão compelidas a limitar conteúdos com referência a sexo, drogas e a vários tipos de violências (agressão física e verbal, exposição de pessoas em situações constrangedoras e humilhantes, linguagem e gestos obscenos etc) sob pena de receberem multas, suspensões e até de terem suas concessões cassadas. Uma novidade boa nesse pacote do governo federal é a restrição que deverá ser feita à publicidade e a propaganda que induz a criança ao consumo.

O Cartoon Network, canal a cabo que transmite comerciais, intercalados de desenhos animados, está fazendo uma insistente campanha de difamação da cultura popular para vender sua programação. A peça mais recente levada ao ar é uma cena de grande desânimo com uma dança de pau-de-fita com crianças apáticas tocando música de forma deprimente. Uma voz “maneira” diz para os pequenos telespectadores que seu dia “não tem que ser assim”. Anuncia a sua atração e complementa: “São três horas daquilo que você quer ver e não daquilo que você tem que ver”. Como se não bastasse, arremata: “Sabemos o que você gosta”.

Ao ver a insensatez desse comercial, fico imaginando uma criança recebendo pequenas doses diárias de cocaína, no momento em que testa as suas hipóteses de preparação do discernimento para a vida. Com o tempo, quando estiver viciada, o traficante poderá ter a mesma petulância que o Cartoon Network demonstra ao dizer que sabe o que as crianças gostam. A presença do que está ausente, apenas por ser uma imagem transmitida, não coloca o conteúdo acima do meio que o transmite, nem à margem das pessoas que o recebem. Pode parecer contraditório, mas só é possível haver liberdade plena quando há limites norteadores da prática da liberdade.