A vacina de “por que não?”
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno 3, página 3

Quinta-feira, 14 de Agosto de 2008 – Fortaleza, Ceará, Brasil

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Encontro de sanfonas. Sábado passado no anfiteatro do Centro Dragão do Mar. Adelson Viana comunica à platéia que vai tocar, em homenagem a seu pai, a composição “Subindo às Nuvens” (José Viana Ferreira), da década de 30, do século passado. Explica que essa música é um tema da sua família que ele aprendeu a gostar na infância. Silêncio. O som dos “Viana” ecoa palco afora, naquela noite de nuvens e céu estrelado para quem quiser vaguear.

Meus filhos viram tudo aquilo com relativa atenção. No final, enquanto aplaudíamos, o Artur, de sete anos, apontou para o céu e disse: “Pai, sabia que aquele brilho que parece uma estrela é o planeta Vênus?”. Mal eu me preparei para dizer alguma coisa e o Lucas, de nove anos, emendou logo outra pergunta: “Sabia que Vênus é o planeta mais quente do sistema solar, porque tem uma atmosfera que retém o calor do sol?”.

Pergunta vai, resposta vem, e pus-me a pensar na grandeza daquele instante. Lembrei da atriz Denise Dummont me contando tempos atrás, que nunca tinha dado a menor atenção à obra musical do pai, Humberto Teixeira (1915 – 1979), pois só gostava de rock. E me dizia satisfeita que tinha despertado a tempo e que estava se desdobrando como podia para produzir o filme “O homem que engarrafava nuvens”, como fruto da sua descoberta do trabalho maravilhoso do pai, um dos maiores e melhores compositores brasileiros.

Por trás das nuvens eu via Vênus nos vendo. O Encontro de Sanfonas continuava com Toninho Ferragutti e o Quinteto da Paraíba tocando “Na sombra da Asa Branca”. Aquela imagem de sombra deslizava inquieta sobre o mato seco da minha recordação catingueira. Segui pensando nas palavras de Denise e em tudo o que ela tem em si, que foi construído sem ela perceber pela convivência que teve no ambiente do baião criado por Humberto Teixeira e Luiz Gonzaga (1912 – 1989). E ela concretizou a revelação desse sentimento no filme que já está pronto e conta com o auxílio luxuoso de nomes como Patativa do Assaré (1909 – 2002), Chico Buarque e David Byrne.

Isso tudo ocorreu no sábado, como eu já disse. No dia seguinte, domingo bem cedo, ligo a televisão para ver a apresentação das ginastas brasileiras. Olhei para os meus filhos e percebi que, como eu, eles estavam emocionados com a Daiane dos Santos executando sua arte ao som de “Brasileirinho”, de Waldir Azevedo (1923 – 1980). Toda vez que vejo esse número da Daiane fico agradavelmente comovido. E fiquei mais sensibilizado ainda porque tive a impressão de que as crianças também estavam vendo aquela manifestação de caráter desportivo na arena olímpica de Pequim, não apenas como uma mera competição, mas como uma transpiração de brasileirice.

Fui às nuvens. E pensei: “É a vacina funcionando”. Essa metáfora da vacina eu ganhei de presente do compositor Eudes Fraga, por ocasião de uma apresentação do Chico César, no início deste ano, no Kukukaia. Ele me viu com os meus filhos na festa e no final se dirigiu a mim com o jeito de quem não estava conseguindo segurar algo muito importante que tinha a dizer. E disse: “O que você está fazendo ao trazer seus filhos para espetáculos de qualidade é aplicando neles uma vacina cultural, que vai dar a eles a liberdade de viver o seu próprio tempo sem se deixar tomar pelas superficialidades”. Recebi aquela imagem da vacina como quem acha uma lâmpada maravilhosa. E guardei-a em minha memória como se tivesse pedido ao gênio que nunca me deixasse esquecê-la.

Essa vacina é um código não-escrito de direito estético e de essencialidade cultural. Com ela, podemos estimular o sistema sócio-imunológico dos nossos filhos a produzir anticorpos com os quais possam se proteger dos ataques constantes do vírus da coisificação humana. Mesmo que não saibamos bem como criar as alternativas possíveis num mundo de fortunas contraditórias podemos com o caráter preventivo da vacina manter a autonomia de sentir o que temos de mais valoroso no nosso espelho interior. Assim, evitamos o risco de, por incapacidade de autodefinição, aceitar a totalidade do que nos é oferecido como sentido da vida.

Com sua ação de defesa no macrocosmo de embaraços homogênicos que nos rondam, a vacina é um recurso de distinção do que é figura e do que é fundo; do que se vê e do que está por trás do que temos à nossa frente. Com ela nos damos a chance de viver sem algumas coisas que nos são postas como indispensáveis. É possível. Por que não? Aliás, foi essa a indagação que coloquei como a frase que eu, como pai, gostaria que meus filhos guardassem consigo, em um cartaz da escola deles para o Dia dos Pais. Tenho sempre comigo essa pergunta. Ela me ajuda a escapar de imposições desnecessárias exigidas por certas condições sociais. E me ajuda a inventar caminhos…

Fiquei com vontade de conversar com os meninos sobre a vacina, mas desisti. Isso não é coisa para conversa; é coisa para fazer ou não fazer. Aplica-se ou não a vacina com antídotos culturais que filtrem o indesejável. A vacina serve para evitar que o excesso do que não interessa contamine o nosso eu interior. Quando damos aos nossos filhos opções descoladas das pressões de alinhamento aos modelos induzidos estamos dando a eles oportunidades de sentir semelhanças, diferenças e inclinações para poderem pensar e agir fora da caixa. E mais, toda vez que forem capciosamente discriminados por estarem fazendo algo fora da linha de domínio das máquinas de conformação comportamental, com a vacina estarão aptos a perguntar: “Por que não?”.

Já tinha deixado o assunto de lado quando dei com um artigo do professor Rubem Alves, intitulado “Não vou ver as competições” (FSP, 9/8/2008), no qual ele argumenta que não tem tanto interesse em ver os Jogos Olímpicos porque os atletas não costumam executar suas atividades por prazer, são máquinas especializadas em distintas funções, preparadas para provarem que são melhores do que todos as outras. E faz uma comparação que me leva a mexer novamente com as crianças: “A competição, representada no seu ponto máximo pelas Olimpíadas, é o oposto do brinquedo. O brinquedo é uma atividade feliz. Por sua vontade, o corpo não competiria. Ele brincaria”.

Na hora do almoço, li à mesa o texto do renomado educador. Os meninos escutavam Rubem Alves dizer, por meio da minha leitura, que se fosse pela vontade do corpo não haveria o estresse da competição, porque o estresse faz sofrer. “O que o espírito olímpico deseja é levar o corpo ao limite do estresse. E o limite do estresse é a morte”. Eles me interromperam, dizendo que não estavam gostando do texto, porque eles gostam de olimpíadas e gostam de assistir. Pedi que escutassem o final quando Rubem Alves diz que, dos jogos, verá apenas o vôlei das meninas e a ginástica rítmica porque é bonito. Pausa. Os dois olham para mim. “Também vejo porque acho bonito”, reage um; “Gosto de ver porque é legal”, complementa o outro. Senti que tinha renovado a dose da vacina.