Acho que vi um gatinho
Artigo publicado no Jornal O Povo, Caderno Vida & Arte, página 6

Segunda-feira, 11 de Outubro de 1999 – Fortaleza, Ceará, Brasil

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Quando o bon vivant Charles Perraut (1628-1703) resolveu congregar em livro os melhores contos da cultura oral européia, para dar de presente a seu filho caçula, foi criticado por materializar e contribuir para a perpetuação de muitos aspectos da violência contidos no imaginário popular. A polêmica extrapolou as fronteiras da França e, na introdução de uma das tantas edições da obra, P.J. Stahl defende o autor utilizando-se de fato real para provar que, em condições normais, as crianças só absorvem o que lhes convém. Para ele, a qualidade da matéria-prima do trabalho de Perraut está na inocência dos bons demônios que edificam o caráter infantil por entre consolos e diversões.

Conta o prefaciador sua aventura de, certa vez, ter ficado com a missão de distrair uma criança durante pouco mais de meia hora. Tentando cumprir a tarefa de clone de babá da maneira mais refinada, pegou o livro de Contos de Perraut e começou, sagaz e condizentemente, a ler para a menininha a trágica história de Chapeuzinho Vermelho. Depois do momento final, quando o lobo devora avó e neta, a garotinha ficou com cara de quem esperava mais. Ao perguntar se ela achara a história divertida, a resposta foi afirmativa, mas o complemento deixou o narrador estupefato: “É muito bonzinho esse lobo!”. Quando a mãe da pequena Thècle retornou, ele ficou sem saber como contar a constatação desse estranho problema psicológico na menina.

Encheu-se de coragem e relatou tudo, até descobrir que a mãe havia prometido um pedaço de bolo para a menininha ficar bem comportada na sua ausência. Foi então que P.J. Stahl se deu conta de que, durante toda a leitura, sua interlocutora havia mantido uma especial atenção no bolo que a Chapeuzinho Vermelho levava para a vovozinha e que o “amável” lobo, com fome suficiente para comer uma senhora idosa e uma criança, teve a generosidade de não comer. Bolo que, na mente da garotinha, bem que poderia ser o mesmo que sua mãe tinha prometido antes de sair. Não se tratava, portanto, de qualquer perturbação intelectual ou espiritual, simplesmente de uma lógica infantil aplicada a uma circunstância pouco observada pelo razão adulta.

Passados três séculos da polêmica de Perraut, continuamos sem definir exatamente os limites da interferência entre o real e o imaginário na formação da personalidade das crianças. Os frustrados sonhos tecno-consumistas de conquista do prazer e da onipotência, que marcaram o século XX, precisam de todos os álibis para combater o seu próprio embrutecimento. A fratura exposta da violência ameaça os próximos passos da humanidade. Surge uma ânsia de luta pela urgente promoção da essência humana, atropelando, muitas vezes, valores fundamentais da agressividade, em nome do politicamente correto. Assim, o maravilhoso repertório de fábulas, histórias em quadrinhos, cinema de animação e músicas da infância, parece entrar em rota de colisão com o esforço de construção de uma cultura de paz. Todos esses campos de expressão, como, aliás, tudo no mundo, têm suas fatias abomináveis. O risco da generalização passa a ser perigoso.

Ao longo dos anos, conforme a moral e a própria dinâmica de cada comunidade, aconteceram mudanças nos desfechos das fábulas e na forma de apresentação dos autos e cantigas populares. Essas variações ocorrem por força da sabedoria e evolução coletiva. Entretanto, as pretensões isoladas de banir a energia que denota agressão em determinadas obras tornam-se totalmente sem graça, como fazer charge a favor. Encontra-se no mercado um disco intitulado “Caixinha de Dormir”, fabricado pela Angels Records, do Rio de Janeiro, cuja segunda faixa é “Não atire o pau no gato”. Na busca de dar uma contribuição na redução da violência, a editora deste CD agride uma tradicional obra de Domínio Público. Cantar “Atirei o pau no gato / mas o gato não morreu” transcende a qualquer interpretação racional.

Para ajudar as crianças a aprender a cuidar das suas pulsões, diante das forças que compõem o ambiente, foi que a genialidade popular criou “O cravo brigou com a rosa / debaixo de uma sacada / o cravo saiu ferido / e a rosa despetalada”; “Marcha soldado / cabeça de papel / se não marchar direito / vai preso no quartel”; “Formiguinha da roça / endoideceu / com a dor de cabeça / que lhe deu”; e “Samba-le-lê tá doente / tá com a cabeça quebrada / Samba-le-lê precisava / era de umas boas palmadas”, dentre tantas outras composições, nas quais a agressão lúdica estimula a empatia e a vivência dos conflitos naturais do cotidiano.

Ao exercitar a habilidade de adquirir conhecimento do drama de viver, a criança desenvolve competência para gerenciar as situações correntes. As cantigas de roda impulsionam a união e a afetividade. A música, os movimentos e o senso de ritmo tornam-se mais importantes como agentes socializadores do que a leitura dissecada de qualquer verso considerado daninho. Na verdade, as brincadeiras de roda, com suas músicas hipoteticamente malvadinhas, disciplinam a agressividade, a intolerância e a timidez, através dos jogos de cooperação, alternância de função e, especialmente, do controle da espera da vez. Esse, sim, é o segredo da riqueza dessas composições muitas vezes carregadas de imagens de suposta violência. Nas cantigas de ninar, os bois da cara preta, cucas e bichos-papão, estão mais para auxiliares de concentração de sono do que para monstros aterrorizantes e cruéis.

No ano passado, a ONU (Organização das Nações Unidas), que pouco está ligando para os massacres sangrentos da periferia global, realizou uma análise dos desenhos animados na televisão brasileira. Misturou zé com cazuza, fez um sarapatel eletrônico e chegou a conclusão de que a cada hora são cometidos 20 crimes de lesão corporal e homicídio nos filmes de animação. Aproveitou a ocasião para vender a idéia do quanto somos incompetentes enquanto sociedade e, por isso mesmo, do quanto precisamos de ajuda e caridade externa. Seu diplomático delito assanhou o formigueiro, soltou os tamanduás e bateu asas para outros terreiros.

Os personagens Piu-Piu e Frajola (Robert McKimpson / Charles Jones / Fritz Freelang) formam um dos exemplos mais equivocados do mapeamento estatístico da ONU. O gato alvinegro, de nariz vermelho, quer obstinadamente devorar o frágil passarinho amarelo, de olhos azuis, a cada episódio. A violência nesta alegre criação não aparece por si mesma, mas como um recurso preparatório para a elevação da força do frágil sobre a fragilidade do forte. A superação dos obstáculos encontrados pelas crianças em um mundo de adultos é facilmente identificada nessa relação. Quando o Piu-Piu diz “Acho que vi um gatinho!”, ele exclama toda a sua ingenuidade desnorteadora da intenção do Frajola de devorá-lo. Duvido que alguma criança torne-se mais violenta por conta da peleja entre esses dois personagens. A não ser que essa agressividade fantasiosa, infelizmente já tenha lugar cativo na sua vida real.

Essa curiosa desatenção ingênua do Piu-Piu me faz lembrar o filme “Balão Branco” (Jafar Panahi). No desejo de comprar um peixinho ornamental por ocasião da passagem de ano, a pequena menina iraniana, interpretada por Aida Mohammad Kanhi, mistura-se com suspeitos mercadores e encantadores de serpentes, sem perceber o tamanho do perigo que corre. Para o olhar infantil, o conteúdo alegórico não se confunde com a perversidade, embora seja comum a utilização de dados da realidade na construção de sua fantasia. Andar, pegar objetos, aprender a ler… Cada barreira rompida no processo de crescimento vai dando a imunização de reforço e abrindo os sentidos para o conhecimento dos limites para com o outro e com a natureza.

Não existe sociedade a-violenta. Investir na purificação total dos atos agressivos é violentar a natureza humana e incentivar o tédio. E poucas coisas conseguem ser mais agressivas do que o fastio de viver. A banalização da vida que aterroriza a humanidade é uma crise da falência do modelo ultraliberal e da ausência de opções visíveis ao padrão decadente. A miséria fashion dominante vem há muito vestindo o planeta de obscuridade. Que devemos estar atentos ao que for preciso para reverter esse quadro desolador, não há a menor objeção. Muito pelo contrário. Mas, por conta disso, sair picotando as figurinhas do álbum do universo infantil é covardia. As bordoadas que a Mônica (Maurício de Souza) dá em seus amiguinhos, com aquele simpático coelhinho azul, são tão imperceptíveis pela lente da violência quanto cantar “O pato pateta / pintou o caneco / surrou a galinha / bateu no marreco / pulou do poleiro / no pé do cavalo / levou um coice / criou um galo”, da arte de Vinícius de Moraes e Toquinho para a meninada.