Amor de mercado
Artigo publicado no Jornal O Povo, Caderno Vida & Arte, página 8

Terça-feira, 14 de Dezembro de 1999 – Fortaleza, Ceará, Brasil

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De tanto servir de rótulo para os mais distintos sentimentos e práticas humanas, o amor virou uma palavra confusa e desgastada. Usa-se amar para justificar a vaidade do ciúme, a posse na traição, a rixa na relação impossível, a atração carnal na cópula livre, a abstenção sexual no desejo cortês, a paixão na fantasia romântica, o dogma na invenção divina e o encanto súbito no chamado amor à primeira vista. Com a vitória da ideologia de mercado sobre o humanismo, houve uma expressiva planificação do amor, interferindo agudamente na qualidade do tempo de nossas vidas. Sem fazer a distinção entre amor e parceria por interesses competitivos de sobrevivência, tornamo-nos uma sociedade marcada pela dor incurável da insuficiência.

O campo do amor variou da força do dote para o poder de compra, mantendo o modelo da solidão acompanhada. Quanto vale amar, é uma pergunta que prescinde de qualquer discurso eufêmico. Seguridade econômica, ascensão profissional, social, política… Tem muitas razões essa nota promissória da relação dissimulada entre prazer e consumo. Tem também seu estresse. Nada é mais cansativo do que a obrigação da presença e a exclusividade condicionada. Escolher é um exercício fundamental para a saúde do amor. Discordo das teorias que fundem as pessoas e defendem uma completitude desumana para os casais. A idealização, por perfeccionismo, astúcia ou padrão moral, transforma-se inevitavelmente em rejeição.

Como arquétipo do amor, o coração foi “escaneado” e suas batidas “sampleadas” e compactadas para disponibilização em todas as cores e ritmos na rede mundial de máquinas eletrônicas. Por mais estilizado e cheio de efeitos que possa aparecer nos monitores, o coração digital vem retomando o seu conceito mais primitivo de bomba sangüínea. Já não serve mais para explicar o desejo. A oferta de ícones para a excitação é pulverizada e tentadora. O voyeurismo virtual é higiênico, sem bafo, sem cheiro, evita riscos e ninguém precisa sair de casa para se divertir. Considerando que o medo de encarar o outro e de ser vulnerável nas relações afetivas é o principal drama do amor neoliberal, a fidelidade da alienação ganha mais e mais adeptos, que dispensam o timbre da voz, a pausa, a respiração, o brilho instantâneo do olhar apaixonado, o calor e o sabor táctil.

Em contrapartida, quase como uma oposição ao vazio gerado pelo excesso de ofertas intocáveis da internet, fundou-se a doutrina do sexo por desempenho. Acho que é meio um esporte, uma disputa que nasce no esforço de auto-ajuda entre a gostosa da academia e o atleta de boate. A regra desse jogo é objetiva e resume-se na contagem de pontos da simulação. Importa menos o que somos. A vitória é considerada pelas deficiências do outro. Caímos na celebração obcecada do corpo e de suas delícias, aniquilando a ternura, a cumplicidade, o zelo e a compreensão do sentimento recíproco. A tolerância, o respeito mútuo, a valorização da intimidade e da confiança, são valores cada vez mais raros, mas que continuam indispensáveis para que se possa estar de bem com a vida, consigo mesmo e com o outro, sem o sentimento de intromissão, vigilância e cobrança. Se não há pagamento no amor, não existe troco.

É mais do que normal que diante das tantas mudanças experimentadas no mundo, o amor também passe por suas metamorfoses. Elas precisam, inclusive, ser estimuladas pelo quanto são necessárias para a vitalidade e renovação desse bem fabuloso e humano. Ao fazer esta reflexão não sei se estou apenas revivendo o causo do louco que procurava uma chave na parte mais iluminada da praça apenas porque ali era o lugar que estava claro o suficiente para a sua busca; ou se estou enveredando pala dica do outro louco, da mesma história popular, que passou a procurar a chave nos cantos de mais completa escuridão da praça, simplesmente baseado na informação de que fora ali que o outro perdera a chave. Acredito que, pensando, a gente acende alguma luz, e que, ao dividir o pensamento, essa luz propaga-se entre os que estão dispostos a multiplicá-la. Eis, no entanto, a minha preocupação de que não vale a pena perder o amor de vista por conta da sedução competitiva que nos atordoa.