As mensagens do povo Nazca
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno 3, página 3

Quinta-feira, 14 de Janeiro de 2010 – Fortaleza, Ceará, Brasil

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No deserto costeiro peruano, entre o mar e a cordilheira ocidental, formada por rochas vulcânicas, sedimentares, paleodunas e dunas de areias andantes, situa-se Nasca. Com cerca de 40 mil habitantes e temperatura que varia entre 5ª C à noite e 40ª C durante o dia, a cidade se move ao capricho dos ventos, que durante o dia sopram desde o mar e à noite no sentido contrário, e do fenômeno El Niño, que vez por outra, raramente mesmo, brinda o lugar com chuva.

Mas não é o clima desértico nem os rios subterrâneos que fazem de Nasca um destino turístico-cultural. O que coloca o lugar no centro das atenções de curiosos e estudiosos do mundo inteiro é a qualidade técnica e artística da sua produção milenar de cerâmica e tecelagem e, sobretudo, os gigantescos e estilosos desenhos geométricos e de bichos expostos ao cosmo divino sobre um platô (pampa) de 550 quilômetros quadrados.

Na segunda-feira passada realizei um antigo desejo que eu tinha de sobrevoar a área para ver de perto a famosa exposição da arte e da religiosidade nasquense. São gravuras gigantescas de aves, animais, vegetais e de seres místicos, desenhadas entre os séculos 300 a.C e 600 d.C. É algo realmente inacreditável, pela precisão dos traços, pela disposição espacial e pelo sentido transcendente dos enigmáticos geogrifos.

Ver do alto me instigou a querer tocar pelo menos uma das linhas. Depois de uma caminhada a pé, a partir da carretera, pude observar com que simplicidade aquelas pessoas conseguiram fazer uma obra tão grandiosa e com tanta resistência ao tempo: eles afastaram as pedras da superfície, colocando-as à margem do que seria o traço de cada figura e contaram com a conservação do “sereno da noite” e com os ventos que sopram rasantes, evitando que se acumulem terras sobre as linhas.

Quando eu imaginava que o mais chocante nas Linhas de Nasca seria o impacto estético dos extraordinários desenhos feitos em sulcos contínuos, de contornos harmônicos, com entradas e saídas em pistas trapezoidais, retangulares e triangulares, descobri que o grande impacto dessa exposição a céu aberto está na sofisticada singeleza da sua técnica de aplicação do traço, que dá a condição de expressão do estilo e da intenção da sequência dos desenhos.

Aquele pequeno sulco, que não parece com nada, é um detalhe de uma aranha de 46 metros, de uma baleia de 63 metros, de uma raposa (zorro) de 51 metros, de um pelicano de 300 metros ou de uma lagartixa de 187 metros (danificada em 1937, quando da construção da carretera panamericana). Agachado e olhando em perspectiva vi a distância retilínea de alguns esquadros que impressionam pelo esmero matemático e geométrico em pistas com larguras de centenas de metros, que partem do centro de irradiação das linhas.

Há desenhos feitos em relevo, como é o caso do Astronauta, de 32 metros, esculpido na lateral de um morro de pedras, e mais de uma centena de espirais de tamanhos diversos, que representam o movimento da água e do vento. Uma dessas espirais está aplicada com muita definição plástica em 30 metros da calda do macaco, que tem 110 metros. Tem muito o que refletir sobre essas linhas que se entrecruzam com figuras de plantas longevas, como a milenar Huarango, llamas feitas em pilhas de pedras e a mais reverenciada delas, que é a imagem do beija-flor de 96 metros, símbolo da polinização, da fertilidade, que como outras figuras, tem presença nas peças de cerâmica e de tecelagem.

As interpretações sobre as linhas e as figuras de Nasca variam, não são e provavelmente jamais serão conclusivas. Dizem que elas estão relacionadas ao culto à água, com indicação de veios subterrâneos e esquemas de irrigação; dizem que tiveram função de calendário agrícola com base astronômica; dizem que representam a trajetória das constelações, do sol e da lua; dizem que têm caráter genealógico; dizem que fazem as conexões entre túmulos; dizem que ligam lugares sagrados; dizem que apontam para centros urbanos e cerimoniais; dizem, enfim, que este é um dos maravilhosos enigmas da humanidade.

Somos seres embalados pela sabedoria da dúvida. Nesse sentido, prefiro observar tudo isso pelo viés da cultura. Gosto da sensação de que as figuras e as linhas de Nasca foram feitas para serem observadas do céu. Quando adolescente, li um dos livros do polêmico escritor suíço Erich Von Däniken, no qual ele se defendia da críticas recebidas pela afirmação de que os deuses eram astronautas. Däniken afirmava que a terra teria sido visitada por ETs, que haviam repassado conhecimento tecnológico a alguns povos. Dentre os exemplos que apresentava como prova de suas hipóteses estavam as linhas de Nasca, que ele definia como aeroportos de discos voadores.

Fantasiosa ou não, essa versão do contato com alienígenas que teriam sido confundidos com deuses é bastante cultivada por ufólogos e resultou inclusive na nominação de astronauta a um dos desenhos, que parece uma figura humana. Tudo é possível na nossa confusão entre o real e o imaginário. Prefiro, contudo, apreciar os geogrifos nasquenses como uma expressão do ser humano projetado no tempo em um olhar do passado que alcança o futuro em uma busca permanente da sustentabilidade pela sacralização da natureza.

Os Nasca eram agricultores, pescadores, criadores de animais domésticos e artesãos, que se desenvolveram no entorno de um núcleo cultural e religioso chamado Cahuachi. A coesão social se dava pela força do culto a divindades relacionadas com a meteorologia e pela estrutura de aquedutos, que facilitava a exploração das terras cultiváveis. Tinham hierarquia social, com definição de especialidades, divididas entre a produção primária do trabalho comum, a transformação de matéria-prima e uma elite organizadora da vida comunitária e dos espaços cerimoniais. Nasca foi centro administrativo durante a expansão do império Inca (meados do século XV a meados do século XVI).

O material arqueológico encontrado até hoje em cavernas e cemitérios mostra uma destacada produção cerâmica e têxtil de lã e algodão, com fino acabamento, traços estilizados, cores variadas e temas da vida cotidiana. Revelam que eles desenvolveram inclusive a produção de algodão colorido. Com elementos do mundo animal, vegetal e fantástico eles definiam a simbologia aplicada a funções decorativas, rituais e utilitárias.

Pelos instrumentos musicais colhidos em escavações e pela maneira como estavam dispostos nos sítios investigados, os pesquisadores deduzem que a música tinha uma força encantatória para os nasquenses, por ser, assim como os geogrifos, uma forma de se comunicar com os deuses. Foram encontradas ocarina, trombetas de barro, tambores de cerâmica, instrumentos de percussão e especialmente antaras de tubos de argila sobre vegetal, em formato de flauta de Pan e zamponha.

A cultura nasquense tinha um sistema hidráulico sofisticado, com galerias de armazenamento de água e poços de inspeção (Puquios) em canais espiralados do lençol freático. As ruínas das suas edificações senhoriais, públicas e populares aludem a uma arquitetura de elasticidade própria às zonas sísmicas, com muros de adobes cônicos e casas de taipa, amarradas em estacas de algaroba.

As múmias milenares do povo Nasca renasceram no século XX com seus pertences, seus bordados, suas cerâmicas brilhantes e seus geogrifos para contar sua história silenciosa e incentivar seus descendentes a pensarem no indivíduo como parte dos elementos perceptíveis do universo. Fizeram arte como manifestação autêntica de transmissão da memória, de envio de mensagem cultural, na sua dimensão estética, religiosa e científica.