As revelações de Joaquim Barbosa
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno 3, página 3

Quinta-feira, 30 de Abril de 2009 – Fortaleza, Ceará, Brasil

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Por onde tenho andado nos últimos dias, a conversa das pessoas é uma só: o bate-boca entre o ministro Joaquim Barbosa e o presidente do Supremo Tribunal Federal Gilmar Mendes, ocorrido no último dia 22 em sessão plenária transmitida ao vivo pela televisão. O mais curioso é que em linhas gerais esses comentários deixam a sensação de que as palavras firmes e diretas do ministro Barbosa conseguiram libertar um sentimento amordaçado da população.

A leitura que faço desse misto de estampido e tranquilizante, espalhado rapidamente nas comunidades físicas e virtuais, é que as denúncias públicas feitas pelo respeitado jurista à autoridade máxima da justiça brasileira, mais do que indisfarçadamente sugerir que o rei está nu, desobstruiu um pouco o medo que se tem de falar abertamente da justiça. Em situação normal, a função protetora do sistema judicial deveria falar mais alto do que o seu desarrazoado caráter de perseguição.

Nesse episódio marcante, Joaquim Barbosa chega a acusar Gilmar Mendes de estar “destruindo a Justiça deste País” e a insinuar práticas condenáveis do presidente do STF, ao dizer que “Vossa Excelência (…) não está falando com seus capangas do Mato Grosso”. O que inicialmente parecia uma troca de insultos, resultante da tensão dos julgamentos, transformou-se uma foucaultiana ontologia do presente, nos planos do conhecer, do poder e da subjetivação.

De tudo o que tem sido noticiado, com relação à degradação social e política brasileira, nada parece mais chocante do que esse pronunciamento tristemente irônico do ministro Joaquim Barbosa. O flagrante delito da liturgia do Supremo impõe à Justiça a necessidade de examinar as razões do relevante apoio popular que se deu em favor do ministro Barbosa. Como no mito de Pandora, os males foram libertados e resta no fundo da caixa a esperança de um povo que precisa enxergar na justiça a representação do seu conceito de si.

Quando os desgastes da boa conduta, dentro dos preceitos estabelecidos na coletividade, acontecem no Poder Executivo e no Poder Legislativo há sempre as possibilidades de substituição dos mandatários. No Poder Judiciário, porém, a vulnerabilidade do papel modelo repercute como impotência social. E isso é o que de mais grave pode acontecer em uma sociedade. Por isso, o fato eclodido no pleno do STF deveria ser encarado como uma oportunidade a ser abraçada pela justiça, como contribuição à nossa educação cidadã.

Do ponto de vista da saúde social esse tipo de situação torna-se um perigo por provocar a destruição do senso de justiça da nação e a desconstrução da noção de sujeito moral no País. O Poder Judiciário precisa de amparo. A boa imagem da justiça passa pela confiança da população naqueles que, por virtude e poder discricionário, têm a autoridade para decidir o bem e o mal, conforme a lei e o espírito da lei. A preservação institucional da justiça é obrigação de todos, mas, quando a contribuição em defesa da sua integridade parte de dentro do próprio Supremo Tribunal, as condições de interferência se tornam mais efetivas.

Dos Três Poderes da República, o que está mais atrasado em termos democráticos é o Judiciário. Incidentes como o ocorrido no STF criam a expectativa de que logo após a complexa Reforma Política, o Brasil deveria promover a complexa e delicada Reforma do Judiciário. Em nome dos ideais de justiça, da estabilidade social e política e do Estado Democrático de Direito, os próprios ministros do Supremo têm cada vez mais motivos para, de forma não corporativa, liderar esse processo de aperfeiçoamento da justiça brasileira, para que ela seja mais acessível, mais ágil e mais igualitária.

A importância que o Brasil vem assumindo em um cenário internacional multipolar requer que o País conte com uma justiça regida pelos princípios da legalidade e da igualdade de direitos, e, para isso, é indispensável a credibilidade das leis e do sistema judiciário. E isso só é possível quando a sociedade não tem dúvidas da integridade dos juízes, dos procuradores, dos desembargadores e dos ministros que compõem esse Poder. Pelo menos. Para isso, mais do que conhecer os elementos condicionantes e condicionados da Justiça, as cidadãs e os cidadãos necessitam da reinvenção do Judiciário.

O acesso deliberado à informação já não deixa mais a cidadania órfã. As hipóteses de comportamentos condenáveis, a queda da reputação das autoridades, a circulação intensa do vídeo nas redes sociais da internet e o trabalho efetivo da imprensa no desvendar das mazelas públicas, não merecem ter como finalidade e resultado o estímulo à delinquência geral. A repercussão das revelações do ministro Joaquim Barbosa, ao expor supostas fragilidades “coronelísticas” do presidente do Tribunal maior da justiça brasileira, deve ser encarada como oportunidade de clarificação e de exercício de responsabilidade por parte dos senhores ministros do STF.

Não tem sentido desperdiçar as afirmações categóricas de Barbosa. Elas precisam ser transformadas em saídas inteligentes e respeitáveis de superação da crise do Judiciário. Parece nítido que o bate-boca não tenha se tratado apenas de um desentendimento corriqueiro. O que transpareceu foi a impressão de que o problema é mais profundo. Profundo quanto? Do que realmente se trata? Indagações e mais indagações povoam as conversas pelo País.

A responsabilidade de não deixar que, por força desse tipo de suspeita levantada, um sentimento de descrédito com relação à justiça tome conta do senso comum não é, todavia, restrita aos estudiosos do assunto nem aos profissionais e autoridades da área. Ela transcende à própria funcionalidade da Justiça por ser vinculada à ética. Os responsáveis formais pela justiça deveriam, diante desses casos, buscar apoio na sociedade civil para que os auxiliem a auxiliá-la. Se manifestações indicam exorbitância de prerrogativas, se situações de agressão ao decoro chegam ao andar mais alto do Poder Judiciário, alguma coisa precisa ser feita, e não é silêncio, ante os elementos justificadores.

Temos acompanhado vários esforços de moralização da justiça, por parte de autoridades competentes e comprometidas com a sociedade. A aplicação de sanções disciplinares, como a aposentadoria compulsória imposta recentemente pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) a um juiz de Porto das Pedras, em Alagoas, por envolvimento em esquema de corrupção, começa a criar uma desejável jurisprudência em favor do controle externo do Judiciário. Mas para que este tipo de atitude ganhe regularidade e sirva de estímulo ao fortalecimento da cidadania, os membros das instâncias superiores da Justiça não podem ser suspeitos.

Quanto menor for o emaranhado de ambiguidades no âmbito da Justiça, maior será a disposição da sociedade na construção progressiva da democracia brasileira. As denúncias gravíssimas feitas pelo ministro Joaquim Barbosa colocaram em evidência um tema de imensurável importância, no momento em que estouram por toda parte as sucessivas bolhas do comportamento humano inspirado em parâmetros de insustentabilidade. E a pior saída, nos casos de arranhão de imagem institucional, resultante da confusão entre indivíduos e instituições é deixar persistir a dúvida para a novelização popular.