Boas-vindas a Monteiro Lobato
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno 3, página 3

Quinta-feira, 13 de Setembro de 2007 – Fortaleza, Ceará, Brasil

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A literatura infanto-juvenil de Monteiro Lobato (1882 – 1948) vinha sofrendo um verdadeiro exílio, com edições desatualizadas, mal-cuidadas e com reduzida circulação. Depois de oito anos de processo judicial, para reaver da Editora Brasiliense os direitos sobre a obra do criador do Sítio do Picapau Amarelo, os herdeiros de Lobato dão novo impulso ao trabalho do escritor. Na terça-feira passada, dia 11, participei, em São Paulo, da coletiva de imprensa, na qual a Editora Globo, com o aval presencial do diretor da Monteiro Lobato Licenciamentos, Jorge Kornblush, tornou público que passa a ter a licença de edição e comercialização, para a América Latina, dos 56 títulos (dos quais 31 são infanto-juvenis) do trabalho autoral de Lobato. A diretora da Unidade de Negócios Infantis, Lúcia Machado, fez o anúncio, realçando a responsabilidade de quem está editando um conceito e não apenas uma obra.

O conceito lobatiano de literatura, de educação e de brasilidade retorna do exílio no momento em que o Brasil se ressignifica e o território da literatura infantil e juvenil brasileira toma vulto de grande importância para a configuração do novo país que está surgindo da conjuntura disruptiva atual. A edição do Sítio chega em boa hora por ser uma obra que desafia os cenários e as expectativas do presente. Chega novamente ao público como se não fosse “novamente”; mas como nova, pois ainda continua surpreendentemente à frente do nosso tempo. Foi assim no ano de 1920, quando o livro da Narizinho foi lançado pela primeira vez, e é agora, em 2007, com a edição reconfigurada de Narizinho, a ser lançada depois de amanhã, dia 15, na XIII Bienal do Livro do Rio de Janeiro.

A pretensão da Editora Globo é lançar toda a obra até o final de 2008. Foram feitas apenas correções ortográficas e, nos oito livros de cunho mais didático, estão sendo feitas alterações para atender às mudanças pelas quais passaram as disciplinas e os temas abordados. Lúcia Machado adianta que não houve a preocupação com glossário por respeito ao cunho pedagógico do próprio Lobato. “Ele não subestimava a criança, ele a puxava para cima”, afirma. Com os livros do Sítio da Dona Benta de volta às livrarias o conceito do que temos produzido para crianças ganha a pressão de uma boa dose de criticidade lobatiana, por meio da qual a observação das possibilidades, dos valores, das fontes, do sentido das coisas e do alcance do conhecimento miscigenado da brasilidade, impulsiona a elaboração das nossas experiências.

A genialidade da obra de Monteiro Lobato está exatamente na clarividência, na força das emoções que o levaram a escrever para crianças, no modo brasileiro de ser universal. Ele era o primeiro a acreditar que o Sítio do Picapau Amarelo existia de verdade. Acreditava porque era no Sítio que ele traduzia o Brasil ideal para as novas gerações. A obra de Lobato tem em si a altivez dos que querem viver em um lugar justo e desenvolvido. Apaixonado pelo país, o autor compartilhava com os seus personagens a inquietação, a graça, os ensinamentos e as curiosidades de aventuras transformadoras. O Sítio é um exemplo de convívio das diferenças com eqüidade. Nele, independente do papel que ocupam, todos têm dignidade, todos têm rosto e representam forças culturais distintas e complementares.

Certa vez, conversando com a professora Rosa Maria Meloni, doutora no imaginário de Monteiro Lobato, ela se referiu ao autor do Sítio do Picapau Amarelo como um educador construtivista. Fiquei inquieto com tal referência. Investiguei o sinal que ela me passou, fiz comparações com Jean Piaget (1896 – 1980) e publiquei uma reflexão sobre o assunto neste Diário, em 19/5/2005. Noto que essa é uma discussão a ser mais e mais compreendida e aprofundada, pois com a edição revitalizada da obra de Lobato, que a Editora Globo está lançando, famílias e escolas passam a poder contar com esse tesouro da educação e da cultura brasileiras nos seus esforços de combinação do cognitivo com o sensorial, em abordagem que ensinam e divertem.

A criança que lê a obra de Monteiro Lobato se prepara para ser parte da dimensão plena da vida. Isso, porque ele escreveu para elas com o carinho e a atenção de quem acredita com sinceridade na infância e, assim, chega ao cerne do lúdico, onde se desenvolve a consciência. “Por que as crianças brasileiras gostam tanto dos livros de Lobato? Talvez por ele ter sido o primeiro a tratá-las de igual para igual, contando-lhes histórias, não sobre príncipes e princesas, em paisagens desconhecidas, como muitos outros, e sim sobre crianças comuns, como os próprios leitores”, escreveu a educadora georgeana, Ina Tinianova, como pista para quem quisesse encontrar o Sítio do Picapau Amarelo.

Monteiro Lobato foi traduzido em muitos países do mundo. A fala de Tinianova a que me refiro foi publicada como posfácio em um livro que reunia várias histórias de Lobato, editado na Geórgia, república (independente desde 1991) localizada nas altas montanhas do Cáucaso, entre a Europa e a Ásia, que, então, integrava o bloco da ex-União Soviética. Há uma passagem nesse texto, traduzido por Florice e Lasha Gogadze, que vale a pena reproduzir, por se tratar de uma das circunstâncias em que, na década de 1940, os livros de Lobato foram queimados:

“Rio de Janeiro. Meninas estão sentadas, tristes e cabisbaixas. Nem sequer se movem. Elas olham assustadas para a professora, uma freira esquálida:

– Quem de vocês tem livros de Monteiro Lobato? – pergunta a freira com voz dura e sobrevoa com os olhos a turma, atentando a qualquer reação. As meninas permanecem em silêncio.

– Quem tem livros de Monteiro Lobato? – pela segunda vez a professora pergunta, com a voz ainda mais dura. – Disse que deveriam trazer livros de Monteiro Lobato, e as senhoritas me devem obediência. Quem trouxe?

Ainda titubeantes, uma por uma, as meninas se levantam e caminham para a frente. Todas têm nas mãos livros coloridos: “História do Mundo para Crianças”, “Fábulas da Tia Anastácia”, “Caçadas de Pedrinho”, “Memórias da Emília…” São muitos livros – tantos quantas são as meninas!

– Coloquem os livros todos aqui! – Ordena a professora.

As meninas fitam a professora com tristeza e obedecem. E ergueu-se uma montanha colorida de livros. A professora pegou palha e fósforos, acendeu o fogo… Uma grande chama ergueu-se, cujo reflexo dançava nas paredes! As meninas encolheram-se aterradas. Queimaram-se as páginas alegres. As peraltices de Emília desapareceram em uma nuvem de fumaça. As revelações científicas do Visconde de Sabugosa, os sábios conselhos da Dona Benta, as histórias de Tia Anastácia, as brincadeiras de Narizinho e Pedrinho estão se queimando. Os melhores livros infantis estão se transformando em fumaça negra…”.

O relato de Ina Tinianova é estarrecedor e talvez sirva para aumentar a nossa responsabilidade diante do estágio avançado da democracia empírica brasileira; essa vigorosa cultura mestiça tão bem resumida e projetada nas páginas dos livros infanto-juvenis de Monteiro Lobato. A visão de mundo do autor do Sítio do Picapau Amarelo, sua maneira esperançosa e pragmática de influir na nossa educação faz parte da formação de um país, cujas riquezas naturais e culturais devem estar voltadas, antes de tudo, para o bem-estar dos brasileiros.