O que aconteceu no município paraibano de Cabaceiras não é trivial. Desde que tomei conhecimento da reconfiguração cultural e econômica ocorrida naquele lugar que eu tinha vontade de ver de perto o que parecia impossível. São 640 km de Fortaleza e 180 km de João Pessoa. Passei o Ano Novo por lá, na pousada Matuto Sonhador e seguindo o entusiasmado guia Norberto Castro. Pude constatar alguns dos passos dados por aquela gente em direção ao ecodesenvolvimento.

No artigo “Efeitos práticos da cooperação”, publicado neste Vida&Arte (12/06/2018), comento o livro “Pactos & Impactos – Cooperação para o Desenvolvimento”, de Cícero Sousa, no qual, entre outras experiências, o autor mostra como o povo cabaceirense participou do Pacto do Cariri paraibano, movido pela consciência de si e pelo orgulho de ser do sertão para transformar os atributos do semiárido em fontes econômicas e de sustentação social.

Fundada em 1735 e desmembrada de Campina Grande em 1834, Cabaceiras vinha desmilinguindo por toda a segunda metade do século passado. Nesse período, teve reduzido a um agrupamento de pouco mais de cinco mil pessoas (na sede e no distrito de Ribeira) o que seria uma população acima de trinta mil habitantes não fosse a perda do distrito de Boqueirão em 1959, o desmembramento de Barra do São Miguel em 1961 e a separação de São Domingos do Cariri, em 1994.

Detentora do menor índice de chuvas nordestino, com território em estado de desertificação e sobrevivendo praticamente das aposentadorias rurais e da agropecuária de subsistência, Cabaceiras estava fadada ao desaparecimento. Entretanto, nos últimos 25 anos uma convergência de atitudes e fatores passou a contribuir para a reinvenção daquele lugar. Nesse processo coletivo, destacam-se nomes como os do geólogo paulista Eduardo Bagnoli (1955 – 2010), do coureiro cabaceirense Carlinhos Castro e do jornalista pessoense Wills Leal (1936 – 2020).

Imagens de Cabaceiras (PB): pôr-do-sol, cartaz da Cooperativa de Criadores da Região na fábrica de laticínios, loja da Arteza no distrito de Ribeira, escultura de bode, cabra e cabrito mamando na praça principal da cidade, curtume coletivo e Lajedo do Pai Mateus. Fotos: Flávio Paiva.

Bagnoli era proprietário de um hotel de charme na praia de Ponta Negra, em Natal. Ao saber que a fazenda onde fica o Lajedo do Pai Mateus – com seus impressionantes matacões (grandes rochas arredondadas por esfoliação natural) e uma lenda setecentista do preto velho que, fugindo da escravidão, exerceu ali o seu poder de cura – estava destinada a virar mina de granito, alertou o dono de que, com o geoturismo, aquelas pedras poderiam ser vendidas muitas vezes sem sair de lá. Nasceu assim o hotel-fazenda Pai Mateus.

Para demonstrar que acreditava na ideia, Eduardo Bagnoli, juntamente com uma operadora de turismo sueca, levou a Cabaceiras milhares de turistas escandinavos, atraídos pelo lajedo, seu céu azul, pôr-do-sol, céu estrelado e vestígios deixados pelos povos originários. Bagnoli faleceu e esse programa foi descontinuado.

Carlinhos Castro liderou a criação do curtume coletivo Arteza, responsável pela manutenção das oficinas de artesanato e de uma fábrica de botas no distrito de Ribeira. Já Wills Leal criou a Festa do Bode Rei, momento de celebração do bode e da cabra como expressões de uma cultura, e cunhou a expressão Roliúde Nordestina para realçar a vocação cabaceirense para o cinema. Entre dezenas de produções rodadas no município, está “O Auto da compadecida”, de Guel Arraes.

Entre tantas iniciativas que tornam Cabaceiras exemplar está a Capribov, a cooperativa de criadores de 18 municípios do Cariri, Seridó, Curimataú e Agreste que produz leite, queijo e iogurte para o mercado, mas também para a merenda escolar e para famílias em situação de vulnerabilidade. Assim segue Cabaceiras, com suas estátuas de bodes escaladores e cabras dando leite na praça e um povo acolhedor.