Cartel da baixaria
Artigo publicado no Jornal O Povo, Caderno Vida & Arte, página 8

Terça-feira, 13 de Julho de 1999 – Fortaleza, Ceará, Brasil

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Chegamos ao ponto xis da encruzilhada. Mais um passo em falso e tomaremos o rumo do abismo desmedido para o qual a voracidade das tevês comerciais insiste em nos empurrar. A privatização dos rudimentos sociais, pela indução contínua e canalizada da banalização da existência, falsifica a consciência e enfraquece o poder de reação da maioria das pessoas. A qualquer hora do dia ou da noite está no ar todo tipo de deturpação sexual, violência macabra, narcisismo policial, repórter heroificado, denuncismo atemporal e descontextualizado, pastores virtuais e uma gama de personagens de novelas, variando entre a idiotice e a tonteira histérica. São os produtos que compõem esse inesgotável filão de abuso de poder. Desacato à cidadania com nocivos requintes de monstruosidade.

A ritualização desse conjunto de violências confisca nossas reservas de equilíbrio, esvazia nossa fé e impõe um clima social hospitalar ao nosso cotidiano. Cada indivíduo sente-se terminantemente adoentado mas, o que é pior, de certa forma satisfeito porque o morto por enquanto é o que está sendo retirado do leito ao lado. Estamos em uma imensa UTI hertziana, com cara de açougue e crianças brincando nas calçadas com os olhos da população abatida. Chamar o Estado para exercer o seu papel de regulador dos interesses da sociedade teria tudo a ver, caso ainda existisse Estado no subúrbio global.

No seu Artigo 221, a Constituição Federal deixa bem claro que a produção e a programação das emissoras de rádio e televisão será, preferencialmente, para “finalidades educativas, artísticas, culturais e informativas” (…) para a “promoção da cultura nacional e regional e estímulo à produção independente” (…) com um porém: “respeito aos valores éticos e sociais da pessoa e da família”. Recuso-me a acreditar que a baixaria generalizada, que enche os lares brasileiros de lixo cultural, represente os nossos valores. Sem oportunidades comparativas não há muito como escapar da leptospirose do mau-gosto. A informação, o lazer e as referências artístico-culturais comumente expostas são quase todas estragadas, impróprias para o consumo humano.

Enquanto nossos valores entram em processo acelerado de decomposição, o Governo fica naquela de sugerir às próprias emissoras a apresentarem seus códigos de ética. Os prazos verbais vão sendo elastecidos e o resultado até agora não passa de uma ou outra bajulação pública de alguns apresentadores ratinhos. Tramita no Ministério das Comunicações um anteprojeto de Lei da Comunicação Eletrônica, mas ninguém toma conhecimento. Pela relevância da questão, o Estado (se existisse) deveria utilizar os espaços que dispõe nos meios de comunicação de massa para conduzir esse debate. Mas a sociedade, orfã dos poderes públicos, está sendo cuidada por uma madrasta chamada mercado.

O Brasil tem 19 tevês educativas e culturais que somente neste ano de 1999 conseguiram formar uma associação para defender a televisão de qualidade. É de se imaginar o tamanho dos embaraço para uma união com tal finalidade. Contudo, a Associação Brasileira das Emissoras Públicas Educativas e Culturais, ABEPEC, já é uma realidade, com apenas duas reuniões por ano e muito trabalho pela frente. Dos instrumentos que a sociedade poderia contar, também para resolver esse problema, as tevês comunitárias seriam fundamentais, pois atuam localmente a partir da compreensão e valorização dos nossos mais sutis laços de semelhança. Ocorre que, quase sempre, são canais criados por esquemas políticos e, consequentemente, com reduzidíssimos interesses sociais.

Sinto a falta do compromisso mais amplo das universidades, organizações não-governamentais, associações comunitárias e partidos políticos numa hora dessas. Os líderes dessas instituições normalmente possuem tevê a cabo. Para os que estão com os salários a cada dia mais achatados e experimentam a ameaça de não poder manter a conta com o fornecedor de canais alternativos, a sabedoria do sistema acaba de criar pacotes econômicos para acesso via parabólicas, mantendo a cumplicidade da omissão. Quer dizer, quem continua mesmo enfrentando o problema é quem fica à mercê de sinal aberto de televisão, sem saber como exorcizar os espíritos besuntados das ondas eletromagnéticas.

Sem o estabelecimento de limites capazes de qualificar a nossa programação de tevê, a tendência é o aumento dos termômetros da psicopatia. Sedução em tempos enfastiados por ausência de horizontes sociais tem que ser quente, temperada com suculentas emoções e fantasias bizarras. Nosso instinto voyeurista não tem como fugir de um buraco de fechadura tão privilegiado. Com sofreguidão, excitação e fetichismo, ficamos ligados torcendo por vencedores que nunca seremos e para termos a certeza de que, entre mortos e feridos, estamos salvos pelo grupo de triagem do mercado. Quem, mesmo em casa, consegue escapar se acha com tanta sorte quanto quem ganha qualquer dos cobiçados sorteios e jogos lotéricos feitos ao vivo e a todo instante.

A inevitável morte da cegonha, como mito responsável pela origem dos bebês, assim como a retirada do véu do pudor que inibia a liberdade sexual, tornaram-se necessárias e positivas para a humanidade. A sexualidade vem do surgimento dos seres multimoleculares, há pelo menos meio bilhão de anos. Boa parte da biologia evolucionária encara esse fenômeno como indispensável à preservação das espécies, ante as modificações permanentes do ambiente. É um negócio bonito, poético, sublime. A vocação do ser humano para o sexo como prazer, carinho, amor e paixão, em reciprocidade espontânea, soma-se aos encantos naturais e enche a vida de pulsações e mistérios. Na televisão, tudo isso vira performance, cobrança maquiada e obrigação desportiva da exogamia modernosa.

Numa recente entrevista ao Caderno B do Jornal do Brasil, a atriz Lucélia Santos tocou no assunto defendendo a idéia de que “há valores básicos que não podem ser abandonados em nome da mudança dos tempos (…) o que a gente vê são adolescentes virando modelos e rapidamente ganhando um papel na próxima novela. Ainda sou do tempo em que havia diferença entre uma puta atriz(1) e uma atriz puta”. Essa perda de referências, exemplificada pela estrela de Escrava Isaura, vem pondo, no sofá da sala, milhões de brasileiros em coma cultural, cuja animação precisa sempre de doses mais picantes de realidade. Se continuar assim, logo chegarão ao horário nobre os pacotes de incesto, relações sexuais com animais, canibalismo e outras excêntricas mercadorias televisivas em busca de audência. Vai ser um festival nas nossas cavernas.

(1) a expressão puta atriz significa atriz talentosa