Ceramistas da Moita Redonda
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno 3, página 3

Quinta-feira, 22 de Julho de 2010 – Fortaleza, Ceará, Brasil

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Depois de observar atentamente os instrumentos musicais de barro dispostos no palco principal do Theatro José de Alencar, vi com insuspeita curiosidade os jovens da Orquestra de Barro da Moita Redonda ocupar silenciosamente seus lugares para o concerto regido pelo batera, violonista e maestro Luizinho Duarte. Em cena também, o engenhoso luthier, criador e diretor do espetáculo, Tércio Araripe. Foi na noite da terça-feira passada (20/7), uma noite dedicada ao poeta Manoel de Barros, que teve seus poemas orgânicos recitados por Ítalo Rovere e Aristides Ribeiro.

O espetáculo tem um quê de Naná Vasconcelos e Bené Fonteles, com peças de barro falantes e ambientação de acolhimento mútuo entre cultura e natureza. Rabeca, tambores, xilofones, panelas e apitos ganham, entretanto, sotaques próprios quando tocados pelas mãos das filhas e dos filhos dos tradicionais ceramistas do vale de barro bom, situado entre os rios Malcozinhado e Choró. O som da cerâmica queimada tem o timbre metálico da água, mas tem também o fraseado percussivo de mãos em um punhado de barro vivo que, sobre um tacho, é modelado conforme a música.

Eis, pois, os novos movimentos da arte dos descendentes dos anacés, dos paiacus, dos genipapo-canindé e das gentes africanas que encontraram refúgio no litoral cearense. A Orquestra de Barro inaugura a fase renovadora de uma cultura ceramista conhecida por seus potes vermelhos, com graciosos desenhos brancos, feitos por hábeis pincéis de palito de carnaúba com ponta de algodão. Esses potes, que são a marca da famosa feira de Cascavel, sintetizam séculos de atividades ceramistas, que passam por urnas funerárias, utensílios domésticos e peças decorativas. 

Cada pote, cada panela, cada vaso de flores da Moita Redonda contribui para a formação de um conjunto de indícios da afirmação de uma prática de vida sustentada no barro. Nessa comunidade não parece haver vestígio de objetos de barro com a função de instrumento musical, embora descobertas arqueológicas sugiram que esses instrumentos remontam à própria percepção do sentido da audição. Enterrados como parte dos pertences dos nossos ancestrais sumerianos, egípcios, chineses, andinos e gregos, os instrumentos musicais de barro e suas representações em temas muitas vezes também esculpidos em argila, são símbolos preciosos de uma perspectiva social inspirada no mundo dos sons e do silêncio.

O interessante no que está acontecendo na Moita Redonda é que a introdução dos instrumentos musicais de barro no cotidiano daquele povoado não nasce da necessidade teórica de preenchimento de uma suposta lacuna de ancestralidades. Pelo contrário, a utilização da música como “fio genealógico” dos filhos do barro tem o pragmatismo das realizações que buscam o desenvolvimento na liga da cultura com a economia. “Quase” todas as famílias daquela comunidade de “quase” 900 habitantes sobrevivem do “quase” mercado de objetos de cerâmica. Eles querem se livrar de tanto “quase” e a melhor maneira de fazer isso é conquistar a visibilidade que lhes foi negada pelos sistemas de atravessadores do comércio de artesanato. 

A Moita Redonda quer sair da moita, da invisibilidade injustificada; quer ser vista e reconhecida pelo seu valor de realização; quer fazer valer o seu sentido já existente, mas não explícito, de comunidade ceramista autêntica. O projeto do Grupo Uirapuru, que desenvolve a ação educativa complementar de reapropriação da cultura tradicional pela juventude, chegou em boa hora, em formato de orquestra e de construção de instrumentos musicais de barro. Tudo graças aos sempre bem-vindos Pontos de Cultura, do Ministério da Cultura, e a prêmios como o Interações Estéticas, da Funarte, que possibilitam que artistas como o Tércio Araripe passem a fazer trocas efetivas de saberes com comunidades de reconhecidas manifestações de singularidade cultural.

Entre o desaparecimento e o renascer, a comunidade ceramista da Moita Redonda decidiu continuar existindo, confiante nos avanços das concepções turísticas, que valorizam as comunidades de conteúdos, em projetos como o da Orquestra de Barro e na garra dos seus “troncos velhos”, como chamam a velha guarda, representada por figuras altivas como a Dona Bembem, que do seu sombreado mangueiral exerce o papel de matriarca comunitária, e a Dona Tarina, ativa integrante do Instituto Beija-flor, que luta pela incrementação do Sistema de Artesanato de Barro de Cascavel.

O que me chamou a atenção ao visitar no domingo passado (18/7) o povoado de Moita Redonda, acompanhado pela documentarista Aline Sasahara e pelos nossos filhos, a convite do artista plástico Dim e da sua família, foi a elevada expectativa social provocada por essas movimentações: jovens orgulhosos de pertencerem à cultura do barro, estimulados pela associação da argila com a música; adultos certos de que podem reverter uma situação de atividade decadente com a geração de renda pela evolução do turismo cultural; e uma velha guarda esperançosa de que a tradição ceramista será preservada.

Em conversas com o Dim e com o Tércio, enquanto a meninada brincava com os instrumentos de barro e ensaiavam a confecção de peças de cerâmica no fio d’água do rio Malcozinhado, também fiquei animado com os planos que eles têm de agregar à atividade turística regional, atrações de destaque, tais como a Brinquedim, que é a casa do Dim, em forma de galeria de brinquedos populares e de parque de diversões; o Ponto de Cultura que abriga a Orquestra de Sopros de Pindoretama, trabalho liderado pelo inquieto maestro Arley França; o restaurante temático Dom Tito, que fica na praça da matriz de Cascavel; e a comunidade ceramista da Moita Redonda.

A visão de turismo cultural integrado é uma boa saída para o desenvolvimento do nosso turismo, sobretudo o de praia. Já não tem mais sentido o velho costume de levar o grupo de quadrilha junina ou de maracatu para se apresentar nos hotéis. O turista que ir à comunidade onde as coisas acontecem. A sociedade urbanizada do moderno mundo tecnologizado, carece de contato com as coisas simples, com a vida simples, para fazer terra, para descarregar os raios do estresse, aliviar tensões. Visitar lugares com conteúdo de humanidade e natureza é algo cada vez mais indispensável; lugares com água corrente, barro modelável, expressão lúdica espontânea… Lugares que falam a linguagem do chão nos tornam comuns, por comunicar grandeza simplesmente por serem atos.

O barro é a língua geral da humanidade, daí o seu caráter humanizador. Pouco interessa o idioma que se fale, pouco interessa o país de proveniência, quando a simplicidade de uma comunidade ceramista ou a casa de um mestre em engenharia de brinquedos expressa o universal, o recíproco que dá unidade às diferenças. Em muitos casos, o ambiente visitado é mais importante do que as peças que oferece. O turista pode até não levar um pote da Moita Redonda ou um escorregador do parque Brinquedim, mas pode adquirir a imagem dessas peças estampadas em camisetas, pode querer uma miniatura, um apito de barro que seja e pagar por uma apresentação musical.

Em algum momento, séculos atrás, esses conteúdos se tornaram parte das nossas vidas. As pessoas que os criaram já se foram, mas a obra que ganhou relevância e a capacidade de continuar inventando permanecem. As técnicas e os usos mudam, mas às vezes o novo chega em velhas essências. É como se uma rabeca de barro pudesse dizer que subiu ao palco para anunciar que o futuro está próximo.