O mundo precisa de um novo ser humano, e esse novo ser humano passa por uma nova mulher nas suas mais diversas configurações do feminino. Essa mulher já abriu caminhos para cumplicidades que impliquem em aspirações e gestos proporcionadores da regeneração da biodiversidade planetária e do estabelecimento do senso de justiça, pontos de equilíbrio natural e social arruinados pela predominância de comportamentos guiados por princípios patriarcais.

Embora avolume-se o coro dos apocalípticos e suas necessidades lógicas e, muitas vezes, insanas de poder, passamos por um período de excepcionais ressonâncias no feminino intuitivo e sua capacidade de inspirar essa nova mulher nas práticas cotidianas, aliviando a falsa sensação de que a humanidade permanece a mesma, não obstante as tragédias do consumismo, do mercado da fé obscura e do nocaute da política.

“Basta de sofrimentos! A experiência pode ser saboreada, degustada (…) Chega de procurar desculpas / Chega de viver com medo, / O tempo novo é agora”, dizem os versos da poeta argentina María Laura (Lalita) Bermejo no livro “Todo a mi favor” (Eutonía, 2018). “Quantos anos e quanta vida passei procurando por mim (…) Cheguei. Estou em um espaço de amor dentro de mim (…) Aconteça o que acontecer, venha o que vier, serei capaz”, afirma, categórica.

É impressionante a suavidade com que a autora se coloca como mensageira de temas tão áridos. “Tudo a meu favor” tem como subtítulo “Bocanadas en procesos iniciáticos”, algo como “Desabafos em tempos de leitura dos sinais da realidade e do que fazer com essa percepção“. Mais do que um conjunto de sons e grafismos poéticos, suas palavras participam das mudanças de orientação de ser, e do ser que somos, na dinâmica das transformações da mãe Terra.

Lalita Bermejo com o livro “Todo a mi favor”. Foto/Divulgação.

A poesia de Lalita diz que faz bem viver, que os corações precisam ser acariciados e que cada semente do feminino espalhe o que está ao alcance do corpo e da mente para sagrar a existência. “Meu corpo é minha militância”, assegura o verso que associa a disponibilidade do corpo à intensidade do desejo e ao respeito às divindades que habitam o ser pessoa. “Pediste permissão a essa flor para cortá-la?”, pergunta ao jardineiro machista, que se sente dono da natureza.

Acima de qualquer resposta, “Todo a mi favor” expressa a consciência da importância da atitude masculina frente às novas mudanças. “Avançamos? Vamos lá, vou com você”. Esse ânimo de caminhar lado a lado remete-me à música “Degrau por degrau”, que compus 25 anos atrás, em parceria com a cantora maranhense Anna Torres (repaginada em 2022 na voz de Clapt Bloom), na qual realçamos essa intimidade taoísta: “Sim, com gosto, a diferença” no “Metrô da nova crença”.

A metáfora do metrô, enquanto equipamento urbano de deslocamento multitudinário, que utilizamos como meio de tráfego da nova crença, encontra paralelo na poesia de María Laura no sentido de estação e de encaminhamento da vida: “Como assim, você não pode deixar a vida entrar? (…) Eu sou a multidão (…) Meu olhar triste não está partindo, ele vai juntar-se ao teu. Ou não”. É uma poesia de fortalecimento de conexões entre quem pode regar os próprios sentimentos como cuidadores da Terra e do Céu.

No poema “A sangre viva” (“Em sangue vivo”), a autora rebate acusações de loucas e sem rumo, costumeiramente feitas às pessoas que “regam a Terra com o sangue da vida e semeiam a lua em si”, dizendo que perturbados e insanos são os que se mantêm no poder produzindo guerras, fome, racismo, segregações e ódio, regando a terra com sangue da morte: “Das mãos e do coração adormecido dos verdadeiros loucos, que perderam o rumo e a sanidade”. É nesse antagonismo da realidade que clareiam os chamamentos da poesia de Lalita Bermejo.

 

Fonte
Jornal O POVO