Começar do zero
Artigo publicado no Jornal O Povo, Caderno Vida & Arte, página 8

Terça-feira, 04 de Janeiro de 2000 – Fortaleza, Ceará, Brasil

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Na passagem de ano fiz uma mensagem com a síntese do espírito que me movia naquele momento e a transmiti via internet para muitos amigos. O conteúdo sugeria que começar do zero, limpando as crostas que nos isolam dos sonhos possíveis é a melhor maneira de chegarmos a um feliz ano novo. E continuava dizendo que percebo uma certa insistência na supervalorização dos pequenos detalhes de tudo o que nos incomoda e que, com isso, vamos perdendo mais e mais a capacidade de gozar a parte sublime da vida que a natureza nos dá. Coloquei a chegada do emblemático Ano 2000 como uma grande oportunidade para experimentarmos novos modos de sermos maiores do que os nossos conflitos, argumentando que desfrutar dos conflitos indispensáveis à operacionalização da vida é o grande segredo de viver.

Coloquei essa reflexão como oferenda para o ano que se acosta e, para a minha alegria, recebi muitas manifestações complementares. Fiquei animado com a disposição das pessoas em acreditar que o horizonte está livre para escolhermos a direção do nosso andar. Não há rastros definindo o tamanho dos passos de quem ousar construir novos caminhos. As profecias apocalípticas que aparecem a cada final de século e milênio, quebraram a cara mais uma vez. O fim não está próximo nem nada. Estamos liberados. O cabalístico Ano 2000 põe, enfim, seu detergente simbólico na sujeira das mentes contaminadas pelo medo de existir e pela sensação de impotência no gerenciamento do cotidiano. De repente, abre-se uma nova contagem dos dias, como se uma nova partida fosse dada no espetacular jogo da existência.

Por correio eletrônico, Petrônio contesta essa imagem. Para ele “nunca se pode começar do zero, pois o zero não existe”. E deduz que, ao recomeçar, “cada um de nós o faz do patamar mais alto, a cuja altura se somam as experiências, as desilusões, os amores vividos e sonhados, as vitórias, os revezes…”. Na sua concepção, tudo o que desejamos transforma-se em nossa história, feita dos detalhes que nos impulsionam para o limiar da superação, sem essa de esperar que a natureza nos dê, mas integrados a ela. Todos temos nossas lógicas quando teimamos em refletir e em olhar mais do que a aparência nos mostra. É essa tendência de apreciar o mundo pela força da multiplicidade que atiça o meu ser. Principalmente, quando a convergência se faz pelas trilhas que buscam a luz. E Petrônio indica essa sintonia quando escreve que “já deixei de amar os desencontros das frustrações em combate”.

Karla diz que gosta do meu otimismo. Lembra que “no começo só grunhíamos e hoje falamos, temos a internet; que “no começo era só instinto e hoje já pensamos, às vezes até certo!; que no começo nem sabíamos cozinhar e hoje temos tantos temperos, e até microondas (…) Ainda há quem diga que vamos de mal a pior. Eu, hein? Tô fora! Apressados podemos não ser, mas estamos caminhando… um pouco para o lado, mas mais para a frente. Que venha o ano 2000, o século 21. Vamos iluminá-los”. Incitante o pensamento da Karla. A gente tem uma mania besta de negar a fabulosa evolução da humanidade por conta dos trejeitos que condenamos. Muitos deles, realmente condenáveis. Mas daí, abater o boi para eliminar os carrapatos é qualquer coisa fora de propósito. A pressa descabida, a aparência e o fardo da piedade, desfocam nosso olhar e, por falta de nitidez, deixamos invariavelmente de aproveitar o melhor do que somos, do que fizemos e do que podemos fazer, apenas por ignorância e por infundadas desilusões.

Os inúmeros efeitos colaterais das fórmulas de expansão da humanidade, alternadas ciclicamente pelos que detêm o poder bélico, econômico e da informação, realmente atingem o orgulho de viver em boa parte do planeta. Mas isso é basicamente uma questão de compreensão, de valores e sentido de destino. Dnyse me alerta para esta questão, citando Albert Einstein (1879 – 1955): “Os excessos do sistema de competição e de especialização prematura, sob o falacioso pretexto da eficácia, assassinam o espírito, impossibilitam qualquer vida cultural e chegam a suprimir os progressos nas ciências do futuro”. Responsável arrependido pela existência da bomba atômica, o físico germânico estava coberto de razão na contemporaneidade do seu pronunciamento.

As turbulências do imprevisível, expressas num ano cheio de zeros, nos instiga psicologicamente a criar jeitos substitutivos de ser. Sejam quais forem os prenúncios, racionais ou não, postos ao nosso destino, o vazio gráfico da data inspira novas atitudes e o surgimento renovado de fetiches que possam dar sustentação à diluição de crenças. Nada mais está escrito. Por isso mesmo, os dias que virão prometem mais subjetividade na interpretação dos fatos. Está mais do que na hora de começarmos a entender a História Universal pelas linhas simultâneas do tempo de cada civilização. Soltamos fogos pela chegada do Ano 2000, mas para os chineses, indianos, judeus, muçulmanos, maias, incas e outros povos não cristãos o calendário é outro. Espero que os zeros deste ano nos libertem do desejo de hegemonia. Qualquer hegemonia. O segredo do mundo é a diversidade e o respeito à cultura dos outros. Se acabarmos com essa variedade, acabaremos com o prazer da busca do conhecimento e estaremos sozinhos aonde formos.

O zero foi o último algarismo inventado para a combinação matemática do nosso sistema de valores. Com ele, incluiu-se o conceito da existência do nulo. Quando o calendário gregoriano foi desenhado, os europeus não tinham conhecimento da existência do zero, por isso a contagem dos dias no mundo ocidental pulou do ano 1 a.C. para o ano 1 d.C., gerando uma polêmica que acontece a cada final de século e de milênio. Mudando o que for, penso que os zeros de 2000 abrirão espaços para quem desejar se iluminar e se dar valor. “Nada é tão novo quanto uma manhã bem novinha”, revela o e-mail de Wander. No escrito eletrônico de Navas, a feliz constatação de que “realmente a vida está nos detalhes, nos detalhes da beleza, na delicadeza, na sutileza (…) na beleza de escrever uma mensagem para um amigo e se sentir poeta (…) e ser sábio para viver essa vida que insiste em estar bem ao nosso lado!”. Neivia promete levar a oferenda “no coração e na mente ao longo do tempo” e Tatiana anuncia que vai “rezar por este terço no ano que encerra o século en passant”. Amém!