Cony, quase um irmão
Artigo publicado no Jornal O Povo, Caderno Sábado, página 4

Sábado, 18 de Maio de 1996 – Fortaleza, Ceará, Brasil

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A aventura de conviver com o pai, de acompanhá-lo enquanto ele nos acompanha, é de beleza e emoção sem igual. Em seu livro “Quase Memória”, o jornalista Carlos Heitor Cony mostra que intensificar essa vivência não é difícil, basta auto-permissão e um pouco de paciência.

Está tudo dentro da gente, é só deixar sair. Um natural desfoque do tipo 3D, um divagar despretensioso, pode ser o suficiente para turvar a realidade e clarear o mundo profundo da memória. No momento em que a pupila dilata, o pensamento cai na abstração espetacular da lembrança. São instantes que todos sentimos, mas normalmente cuidamos logo de recompor o nosso foco para o que supomos mais urgente, mais cotidiano.

O livro de Cony tem narração simples, bem estruturada e é movido por um sentimento denso de sofisticada riqueza de detalhes. O autor, estimulado por um pacote que traz marcas de seu pai, desvenda cada parte do embrulho, como se tivesse acessado a homepage do Cony-pai no cyberespaço do pensamento. E cada fragmento observado por ele passa a ser um link dessa relação afetiva que parou o tempo com uma mensagem que não precisou ser lida. O pacote com a letra do pai, com o cheiro da lavanda da pai, com o nó impecável que só ele era capaz de dar. Podia ouvir a sua respiração apertando o nó do barbante. Até, ao fitar o centro geográfico do nó, perceber que tudo aquilo emanava, na verdade, dele mesmo.

Cony diz que seu pai não lhe guardava segredos. Tudo o que lhe disse durante a vida foi por meio do que fazia, de como fazia. Ele era, acima de tudo, um gesto. Um conjunto de gestos que lhe deram sentido a vida. E aquele pacote era ele, mais uma vez, querendo ser útil e necessário. Confesso que, além do conteúdo leve e impregnador que página a página envolve o leitor nesta obra genial, o meu envolvimento com a história levou-me a, repetidas vezes, desfocar a pupila como se bocejasse prazer ao também lembrar do meu pai e suas técnicas infalíveis, sua mania de perfeição, seus truques quase lúdicos com os quais ainda hoje procura superar os conflitos do dia-a-dia.

Tive essa sensação logo quando Cony fala da letra inconfundível do pai. A do “seu” Toinzinho é caligráfica, desenhada com um ritmo singular, cheia de pontas para cima e para baixo. Lembrei também do tempo em que eu era estudante e ele costumava mandar chouriço, doce de leite com rapadura, carne já cortada, pronta para assar, e tantas outras coisas boas que a minha mãe Socorro sempre soube preparar pra gente. O nó no barbante que amarrava o isopor róseo desbotado era só dele. Outra referência que me veio à memória foi quando li o capricho do Cony-pai na colocação de endereços completos nas correspondências. Neste aspecto, meu pai sempre foi tão cauteloso que criou o próprio endereço. Rua da Manchete, s/n. E desprezou distraidamente a denominação oficial.

Este nome Manchete tem uma curiosidade especial. Mais uma de suas invenções. A nossa casa, em Independência, interior do Ceará, tem a frente virada para a cidade e os fundos para o sertão. Está localizada no limite urbano-rural, a poucos metros da margem do rio Cupim. É lá onde ele desenvolve suas experiências laboratoriais. É ainda o cartão de visitas da sua criação de ovinos e caprinos de raça. Por isso, Manchete. E ele explica cheio de imagens: “As chamadas dos jornais não são as manchetes? Pois bem, se alguém se interessa por elas, vai em seguida na parte interna conhecer os detalhes da notícia. Aqui é a mesma coisa. Mostro um pouco de cada raça e, havendo interesse, levo o comprador para a Fazendinha, onde está o rebanho”. Ele criou essa analogia quando entrei na universidade para estudar jornalismo. Foi a mesma época em que descobri que o meu segundo nome, Sílvio, é uma homenagem ao cavalo do Zorro, o Silver; que o nome Paulo, do meu irmão, homenageia o senador Paulo Sarasate e, já com participação explícita da minha mãe, o nome da minha irmã Cynara é uma homenagem a uma das intérpretes originais do Quarteto em Cy.

A leitura de “Quase Memória” passou a ser então cheia de idas e vindas. Em determinados instantes, eu vibrava com as revelações carinhosas de Cony e, em outros, respirava a minha alegria de recordar passagens da minha relação até hoje brilhante com meu pai. Acho que todas as pessoas que tiveram ou têm o prazer de sentir essa aventura do pai são quase irmãs. Sinceramente, antes deste livro fabuloso, eu nunca havia pensado nisso. Tinha lá minhas lembranças, mas jamais havia parado para pensar no que elas guardavam de comum com as dos outros.

Quando Cony fala das queixas da sua mãe, com dor de cabeça provocada pelas essências enjoativas com as quais seu pai tentava produzir perfume, só recordei do cheiro das vagens adocicadas de algaroba, com as quais meu pai produzia ração especial na tentativa de inventar, a partir de uma melhoria genética intuitiva, um carneiro de grande porte para tornar a criação de ovinos economicamente viável em pleno sertão do Ceará. E conseguiu. Depois de muitas dores de cabeça da minha mãe, ele fez o carneiro que hoje muitos chamam de “deslanado nordestino”. Como o pai de Carlos Heitor Cony, sempre fez parte dos truques interiores de meu pai partir de uma realidade estéril para um sonho grandioso.

Tantas foram as semelhanças em tão grandes diferenças e contrastes que fiquei estimulado a curtir mais e mais a descoberta. A rede no cantinho, reservada para o descanso merecido, a mania de extrair prazer pessoal em tudo o que se mete e a eterna esperança de dormir toda noite com a certeza de que no dia seguinte fará grandes coisas, são pontos incrivelmente coincidentes nas vidas dos nossos pais. Para eles, um conserto de uma torneira ou uma excursão ao Pólo Norte representa a possibilidade de utilização das suas técnicas, da ciência espontaneamente perfeita.

Com todas essas paradas causadas pela dilatação da minha pupila no transe da memória, li essa obra como nunca antes lera outra. Talvez o desejo crescente de viver a fusão dessas histórias todas, talvez o receio de perder o fio da meada, tenha me dado a condição de permanecer na realidade do livro e divagar ao mesmo tempo no universo dos meus próprios sentimentos em festa. E estava lá a história do filhote de jacaré que me levou a recordar as vezes em que paramos para pensar na criação de camaleão para a venda de ovos naturais. Estratégia que tinha tudo para dar certo. Imagine o poder nutritivo de um ovo que gera um lagarto! Claro que não dá para comparar com um ovo do qual só nasce um frágil pintinho emplumado, com todo o respeito aos galináceos.

A parte mais emocionante do relato de Cony é quando ele trata do balão que nunca soltou, mas que se transformou no seu emblema, no seu símbolo infantil e eterno. O balão que sobrevoa tranqüilo e colorido sobre a capa do livro. Foi a vez de me reportar ao carrinho de rolimã que fizemos juntos para as minhas brincadeiras nas calçadas. Era o precursor do skate. Todo menino necessitava de um para queimar suas energias incontroláveis. Como o balão de Cony, o rolimã passou a ser o meu logotipo de mundo. Tanto que virou ilustração da capa e nome de um CD que fiz em parceria com amigos compositores e intérpretes da minha geração.

Ao ler o trabalho de Carlos Heitor Cony, é quase impossível alguém não cair nessas associações impagáveis. Vale a pena. Dou o meu testemunho. Afinal, foi lendo sobre a água milagrosa do papa Bonifácio VIII que o pai dele teria trazido da Itália, que parei para refletir mais acentuadamente no mais novo feito do meu pai. Em comemoração aos seus 75 anos, demos a ele e a minha mãe, uma viagem a Portugal e Israel, dois berços importantes da nossa trama cultural. Ele achou tudo muito bonito. Fez foto ao lado do túmulo de Camões e sentiu em Tel-Aviv a tensão do dia do assassinato de Yitzhak Rabin, mas a lembrança mais significativa que se esforçou para trazer foi uma muda de oliveira. Ao ser interrogado sobre a razão desse presente que trouxe para plantar em Independência, ele respondeu: “Dizem que a oliveira é uma árvore eterna”. Deu o recado e arrancou em sua moto sem olhar para trás, enquanto o vento brincava com os seus cabelos brancos.