Coração de chocolate
Artigo publicado no Jornal O Povo, Caderno Vida & Arte, página 6

Terça-feira, 10 de Outubro de 2000 – Fortaleza, Ceará, Brasil

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Pode até ser que alguém identifique algum momento na vida tão especial quanto a infância. Particularmente não creio na possibilidade de qualquer aventura de tamanha sofisticação. Até mesmo porque não há nada que se possa fazer no mundo sem algum tipo de recorrência a essa fase formadora da nossa essência psicossocial e cultural. Falamos sem muito esforço a nossa língua, mas nunca paramos para pensar nos anos que levamos para aprendê-la, da mesma forma que andamos sem notar os nossos passos e sequer nos damos conta do tanto que foi emocionante vencer o medo de caminhar sozinhos.

A descoberta das cores, das dores, amores e outros impactos que dimensionam a nossa capacidade de prestar atenção e interagir com as coisas do mundo acontece espetacularmente sob o efeito pulsativo do nosso pequenino coração de chocolate. A arte da brincadeira, dos jogos e das historinhas de carochinha ensinam a necessidade do respeito ao outro na prática das leis da vida. Nada como uma boa metáfora e uma fantasia consistente para incitar a imaginação e desenvolver o feitiço da inventividade como suporte gestor das nossas relações interpessoais e com o ambiente onde vivemos.

Para quem comete o absurdo de esquecer a importância da constituição infantil na sustentação dos fluxos e refluxos cotidianos, brincar pode parecer uma atividade menos séria do que o mais sério dos nossos compromissos. É na brincadeira onde desenvolvemos a aprendizagem da imaginação e onde nos projetamos com fluidez em situações e personagens nascidos ao sabor da combinação de devaneios, dando forma a emoções e pensamentos. A organização psíquica e a própria coordenação dos nossos sentidos tem o grau de requinte alcançado pela paciência, pela perseverança e pela determinação que pudemos exercer livremente nas nossas brincadeiras infantis.

Brincar é portanto a senha da conquista do equilíbrio e da flexibilidade no relacionamento com o mundo e suas infinitas circunstâncias. Aprender a contar as próprias histórias é um ato revelador de pertencimento. As referências ao lugar onde moramos e aos familiares e amigos que nos cercam atestam o papel lúdico e cognitivo desse instrumento de representação e manifestação ontológica. Quando limitamos o universo infantil aos ambientes fechados da casa, do carro, da escola, dos shoppings centers e da internet, confundimos apreensão do conhecimento com aquisição de informações e acabamos contribuindo para inibir a evolução da sua textura sensorial. O segredo da vida está na percepção estética engendrada pelo aprendizado do olhar e pelas vivências simbólicas praticadas na infância.

Com a absorção crescente do sistema educacional pela indústria cultural tendemos a trocar, por comodidade displicente, o processo gradual de desenvolvimento da imaginação por fantasias pré-cozidas e instantaneamente digeríveis. A escola é o “Butantã” da infância, o lugar onde se produzem os antídotos contra as picadas venenosas dos monopólios éticos e estéticos que regem a nossa sina colonial. As crianças se desenvolvem a partir das hipóteses que criam e testam a cada instante. Do mesmo jeito que associam um rosto feliz a uma voz alegre, os meninos e meninas estabelecem correspondências entre os brinquedos que dispõem e os valores culturais que eles carregam.

O papel da escola não é formar consumidores. A educação é a “brincadeira” de cultivar a cidadania e não a “seriedade” competitiva de configurar pessoas para o mercado. A pedagogia responsável anda de mãos dadas com a diversão e tem nos jogos e brincadeiras infantis um suporte fundamental para a elaboração dos sentimentos individuais e de sociabilidade. Diante do inegável poder de consumo das crianças os nichos escolares passaram a ser assediados filões de negócios. Cada produto infantil que circula no ambiente escolar é uma franquia cultural que se estabelece na base formadora da nossa identidade.

Pouco atentamos para isso e as sereias e duendes continuam determinando uma fonte imagética que ainda não cedeu espaço aos outros seres fantásticos e lendários da nossa miscigenação, tais como o saci pererê, o jurupari e o tutu-marambá. É um deus-nos-acuda quando tentamos encontrar trabalhos infantis que falem das coisas que estão a nossa volta. Os livrinhos estão cheios de elefantes, baleias, rinocerontes, ursos e outros bichos que dificultam as brincadeiras de imitar animais por simples falta de referência original. Na galeria de personagens das histórias em quadrinhos, licenciados para as mais variadas estamparias, também predominam os ícones estrangeiros.

Em um período mais recente, a Turma da Mônica, cujos personagens são praticamente descontextualizados da cultura brasileira, conseguiu entrar nas lojas de conveniência, farmácias e na linha de produção da indústria de brinquedos. Alguns quebra-cabeças da Grow chegaram a ser lançados com telas de Tarsila do Amaral, Aldemir Martins e Carybé. Exceções há, mas, sinceramente, é muito pouco para uma nação com tanta abundância de encantos. Se tivéssemos uma estratégia de país, com certeza as nossas leis de incentivo à cultura contemplariam de forma radicalmente especial a valorização dos nossos motivos. Algo que tornasse de domínio público e que pudesse até mesmo subsidiar os royalties das nossas figuras emblemáticas, facultando a qualquer confecção clandestina o acesso a essas matrizes.