Crise no padrão civilizatório
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno 3, página 3

Quinta-feira, 12 de Março de 2009 – Fortaleza, Ceará, Brasil

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O objetivo era discutir o novo papel dos países emergentes, em especial a posição privilegiada do Brasil, diante dos efeitos da crise do sistema financeiro mundial, mas o que vi no Seminário Internacional sobre Desenvolvimento, realizado em Brasília, nos dias cinco e seis deste mês de março, pelo Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social, CDES, da Presidência da República, foi a abertura de perspectivas para uma compreensão do aproveitamento da crise como ponto de inflexão na inadiável construção de um novo padrão civilizatório.

Pensando bem, foi preciso que a bolha da falsa economia estourasse para que o estampido acordasse o mundo. Várias outras bolhas vinham pipocando e os “responsáveis” pela governança mundial faziam literalmente “ouvido de mercador”. A bolha ambiental planetária, a bolha africana, a bolha do consumismo, a bolha do narcotráfico, a bolha demográfica, a bolha do achatamento cultural, enfim, todas as bolhas de um modelo concentrador de renda, riqueza e poder, que se exauriu pelos desequilíbrios resultantes de suas próprias inconsequências.

O presidente Lula, em sua desassombrada fala de abertura, reconhece a cara feia da crise, mas para enfrentá-la defende que a agenda do desenvolvimento adote um novo idioma político. “Os que sabiam tudo até a crise, agora não sabem nada”. Acredita que se os governantes assumirem o papel que lhes cabe em seus países, sendo mais ousados em seus sonhos e menos subordinados às receitas de gabinete, a travessia será feita para um mundo mais justo e melhor. Fiquei feliz ao ouvir do Presidente que o amparo à infância é um dos temas eleitos pelo seu governo como baliza para o novo desenvolvimento.

As saídas para a crise passam por uma nova lógica para investimentos, mas passam também pela assinatura do Protocolo de Kyoto (relações climáticas/1997) pelo presidente Barack Obama, pela adequação dos atores multilaterais, pelo reforço à integração regional, pela desconcentração da “governança global”, pelo redesenho do novo papel do Estado, pela distribuição da riqueza e da renda, pelo fortalecimento da socioeconomia solidária, da agricultura familiar, da economia popular, do empreendedorismo coletivo e pelo fortalecimento dos instrumentos de integração regional. 

O consenso nesses pontos relevantes não é fácil de ser conseguido, embora um aspecto pareça claro para a maioria: o poder decisório dos rumos mundiais migra da economia para a política. Situação que se desloca ao encontro dos esforços que o governo brasileiro vem fazendo na perspectiva de ampliar a cúpula de chefes de Estado que traçam os rumos do mundo, de sete para vinte países. Para propor a substituição do G7 pelo G20, o presidente brasileiro conta com a autoridade e a legitimidade de quem é respeitado pelo projeto que conduz.

A crise pegou o Brasil em uma situação privilegiada. O País passou de devedor para credor internacional na gestão de Lula. Tem uma estrutura de financiamento doméstico que não depende de dinheiro externo para se desenvolver e diversificada rede de relações comerciais, que diminui a tradicional dependência da Europa e dos Estados Unidos. Nossas reservas estão em duzentos bilhões de dólares, as metas de inflação sob controle e um mercado de consumo de massas fomentado por efetivos programas sociais. A exploração das reservas petrolíferas do Pré-sal, para fins específicos relativos à educação, como criação de condições para as futuras gerações, é um outro sonho dos brasileiros que está se gestando na esfera oficial.

A economista Maria da Conceição Tavares disse em sua fala no encontro do CDES, que felizmente “Fernando Henrique perdeu a aposta e não acabou com o que restou de bom da Era Vargas” (1930 – 1945), que são os nossos instrumentos públicos de desenvolvimento, como a Petrobrás. E ela tem razão, já que uma das grandes diferenças entre FHC e Lula é que FHC pensa o Brasil de fora para dentro e Lula de dentro para fora. Márcio Pochmann, presidente do Instituto de Pesquisa Aplicada, Ipea, lembra que entre 1990 e 2003 o Brasil transferiu o equivalente a um PIB para os financistas.

O modelo esgotou-se. Os instrumentos de governança global estabelecidos no pós-Guerra estão comprometidos. Naquela época, década de 1940, “os países tinham empresas, mas hoje são as empresas que têm os países”, recorda Pochmann. Mas na hora em que se viram ameaçadas, essas mesmas corporações pediram socorro ao Estado diante do sumiço dos trilhões de dólares que tinham atravessado fronteiras sem passaporte e, muitas vezes, sem sequer existirem, levando milhares de pequenos negócios à falência e produzindo a maior catástrofe de exclusão absoluta registrada na história da humanidade.

A ministra Dilma Rousseff, da Casa Civil, a quem o presidente Lula confiou a tarefa de implementação das obras do PAC, criticou a substituição do papel do Estado pela iniciativa privada. “Ao fazer de conta que estava suprindo as deficiências do Estado, o mercado “desestimulou o profissionalismo e a meritocracia na gestão pública”. O presidente do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social, BNDES, Luciano Coutinho reforçou a posição da ministra, dizendo que para construir capacidade institucional é preciso ter burocratas estáveis, qualificados e respeitados.

Maria da Conceição Tavares adverte, porém, que não se pode esperar que a reforma do Estado se dê pelo próprio Estado. Se o povo brasileiro quiser um Estado atuante, ágil, democrático, capaz de exigir contrapartidas claras ao exercer o seu poder financiador, de transformar as disparidades regionais em complementaridades e gerido com base em planejamento de longo prazo, para a conquista do estado de bem-estar social que merece, a sociedade precisa fortalecer a sua participação política.

O quadro da crise sugere que o Brasil tem tudo para sair fortalecido depois das turbulências. A minha única dúvida é quanto ao tamanho dos obstáculos que serão colocados pelo egoísmo social de grande parte das nossas elites, impedindo que novas correntes de pensamento ganhem evidência durante a travessia. Conceição Tavares lamenta a não existência de “um projeto de interesse público na burguesia nacional”, o que, concordo com ela, põe em risco a continuidade de ações que estão planejadas para o médio e o longo prazo.

Ignacy Sachs, diretor do Centro de Estudos do Brasil Contemporâneo, na França, observa que o desenvolvimento de fato dependerá da promoção de um debate nacional sobre estratégia de desenvolvimento; da construção de diálogo entre Estado, Trabalhadores, Empresários e Sociedade Civil; de um PAC local, com obras públicas promotoras do trabalho decente; do estímulo à pesquisa, com foco nas vantagens comparativas regionais e nacionais; e do fortalecimento da cooperação técnica e cultural na construção da nova ordem mundial.

Com a desalavancagem (enfraquecimento de ativos) que fez encolher as economias dominantes, a emancipação social depende do reexame dos nossos padrões de consumo, da relação com a natureza e do respeito à biodiversidade cultural, para que sejam estabelecidas as bases para um novo padrão civilizatório. Dentre os pontos de atenção realçados por Márcio Pochmann, com pressão social poderemos aproveitar a crise para iniciar um processo de conquista de escola para a vida toda, de jornada de trabalho humanizada e até a reinvenção do mercado em termos mais cooperativos. A crise funda um novo tempo e sugere a refundação do Estado, do mercado e da sociedade civil.