Cultura e gesta popular
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno 3, página 3

Sábado, 13 de Maio de 2006 – Fortaleza, Ceará, Brasil

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O Cangaço brotou de um mal-necessário na convivência entre destemidos habitantes da caatinga, com seus latifúndios e coronéis rurais. A vida no interior do nordeste brasileiro, marcada por secas cíclicas, arbustos espinhosos e, principalmente, pela ausência dos poderes públicos coloniais, desenrolou-se em um cenário indiviso no qual as pessoas não conheciam restrições. E como não havia regra ou ordem reconhecida como tal, a violência tornou-se sinônimo da própria lei. A autoridade legalmente constituída mais relevante era representada pelos destacamentos policiais que os cangaceiros desdenhosamente chamavam de macacos.

O MST germinou na zona temperada do sul e do sudeste brasileiro, distinguida pela predominância de minifúndios, resultantes da presença de uma cultura de imigrantes que chegaram ao Brasil em busca de um lugar para viver. A omissão atávica dos poderes públicos na resolução dos problemas agrários fomentou o crescimento de ações inspiradas nos princípios doutrinários marxistas e numa utopia comunitária baseada no respeito à pequena propriedade familiar, na tática de ocupação a terras improdutivas, na hostilização ao uso concentrador de poder econômico e no ataque às formas de produção que ameaçam o equilíbrio do meio-ambiente.

Em que pese o caráter criminal propagado pelo oficialismo contra esses movimentos, tanto o Cangaço quanto o MST conquistaram, em seus sentidos de história paralela, a simpatia da sociedade. No primeiro momento a cultura do cangaço desdenhou do rei e depois desconheceu a figura do presidente, negando a ambos a obrigação de pagar impostos e a obediência civil. Por sua vez, o MST conta com a aprovação da grande parcela da população que vê na concentração da terra uma explícita situação de injustiça social em um País de tantas abundâncias.

Mas se por um lado o Movimento dos Sem-Terra é uma resposta ideológica à questão da desigualdade no campo, por meio da luta de inclusão social e econômica; por outro lado, o Cangaço caracterizou-se pela instituição de um estilo de vida próprio do enfrentamento da adversidade, sem qualquer perspectiva de inclusão nos meios de produção. A tática do MST implica na criação de novos modelos de sistemas produtivos, ao passo que o Cangaço fez do culto à coragem o seu instrumento inclusivo.

O isolamento a que esteve relegado o sertão no período compreendido entre o final do século XVII e todo o século XVIII – ciclo do gado – fez com que nele se mantivessem valores do colonizador mesclados ao jeito nativo de viver. O historiador Frederico Pernambucano de Mello salienta em seu livro “Guerreiros do Sol (A Girafa Editora, SP, 2004) que “O sertanejo não conheceu feitor que lhe orientasse o serviço, nem fiscal que lhe exigisse o cumprimento estrito de tarefas; não conheceu cerca que lhe barrasse o caminhar solto e espontâneo; não sofreu o disciplinamento da proximidade do patrão e muito menos a ação coercitiva do poder público”.

Esses valores foram preservados por todo o ciclo do algodão, até meados do século XX, quando os mecanismos de ordem fundamentados na intolerância pela espera da justiça pública seguiram a eficácia do heroísmo social. Entre as décadas de 1920 e 1940, o Cangaço alcançou um grau de sofisticação como expressão cultural que pôde ser registrado em fotos e até pelo cinema. Ao longo dos anos, esse poder local exercido pela associação entre cangaceiros e coronéis do sertão, fez proliferar uma sofisticada cutelaria artesanal. Nas fazendas, os proprietários exibiam preciosas peças de cavalgadura, com toques de brasões coloniais e marcas de ferro de gado; enquanto pelas veredas os cangaceiros demonstravam seu poder em esfuziante indumentária de arte popular.

O princípio ativo do Cangaço não estava na luta pelo poder central, como se pode identificar no MST, mas numa simples conquista existencial. Por se confundirem com o modo de ser e com os saberes locais, os cangaceiros inventaram uma moda, um luxo pragmático e um jeito próprio de falar, como afirmação política. A indumentária dos bandos representava uma plasticidade inerente à arte popular: cores fortes, colagem de espelhos, estrelas de Israel, crucifixos, bordados florais e anéis em todos os dedos. Mas não era apenas essa comunicação visual que mitificava o Cangaço e dava orgulho aos integrantes dos grupos de cangaceiros. Havia uma dança e uma música, sobretudo o xaxado, que lastreava essa estética catingueira e se expressava intensamente nos bailes perfumados, chamados de samba.

Por sua vez, o MST, referendado na racionalidade ideológica, organizou timidamente alguns elementos simbólicos, do tipo foice e bandeira vermelha com estampa de um verde mapa do Brasil, para sua identificação na abertura de trilhas na luta por terra e crédito agrícola. A despeito de não terem como foco a cultura, os líderes dos sem-terra não reprimem manifestações religiosas, da cultura de massa e do folclore, a exemplo da musicalidade sertaneja e das lendas brasileiras. Nada aquém, nada além de uma valorização circunstancial dos aspectos subjetivos dos participantes.

Neste ponto, a orientação do MST concatena-se com os dizeres da cultura popular de que todo rio só enche com água toldada. Depois decanta. Ou seja: primeiro é necessário tomar o poder econômico e político para depois fazer a revolução cultural. Essa ausência de atenção especial ao entendimento da dimensão cultural talvez seja o maior problema do MST na escalada fora da sua região de origem. O conceito de cultura vivenciado nesse movimento pressupõe que as pessoas se modificam na medida em que modificam suas relações entre si e com o meio-ambiente.

O exercício de modelagem de um novo comportamento relacionado à produção e ao trabalho cooperativo resultaria, assim, no desenvolvimento de uma visão de mercado posicionada no atendimento do consumo das classes mais desfavorecidas. O pensamento dogmático dos líderes do movimento acaba reduzindo o seu potencial de conquista ao subestimar a cultura como aliada indispensável das condições econômicas e políticas. Com base nesse juízo, o máximo que o MST consegue é utilizar o teatro em incursões pedagógicas realizadas por meio de encenações de histórias reais representadas pelos próprios integrantes do movimento.