De Beira Mar a Luciano Huck
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno 3, página 3

Quinta-feira, 18 de Outubro de 2007 – Fortaleza, Ceará, Brasil

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Todos os problemas do Brasil derivam de uma única questão: a baixa representatividade moral e cultural dos nossos modelos sociais. Uma das exceções nesse hiato pode ser encontrada em muitos dos inventores da nossa música, mas, mesmo assim, o que temos de melhor na cultura popular tem sido atropelado pelo que temos de pior na cultura de massa. Vivemos um momento de extremos do mesmo, o que aumenta a complexidade do problema, ao mesmo tempo em que simplifica a identificação das soluções.

A ausência de parâmetros, instituída pela regra da esperteza generalizada, torna-se paradoxalmente um sinalizador do que não nos faz bem enquanto indivíduo e sociedade. Essa situação tem provocado um extraordinário fenômeno de recusa de percepção, por meio do qual o despertar para a dimensão simbólica da desigualdade gera um contraponto à representação do real incutida na idéia ordinária de estrutura social.

Todavia, se o nosso olhar corre para o mundo do crime convencional, encontra a deificação em figuras como a do traficante Fernandinho Beira Mar, que desafia a compreensão de cárcere ao controlar, por telefone celular, o tráfico de drogas e de armas de dentro de um presídio de segurança máxima. Se o nosso olhar tenta fugir do mundo da moral do espetáculo é pego pela exaltação exagerada a figuras como o apresentador de tevê Luciano Huck, que desafia os limites da tolerância pelo exercício do cinismo contraditório entre o que representa enquanto apresentador e o que pretende demonstrar que representa como militante político.

Beira Mar e Huck simbolizam os pregadores efêmeros de um estilo de vida quem tem levado as relações sociais à exaustão. A sobrevivência deles depende ainda do quanto possam influir para que especialmente a juventude imagine que o ciclo do supérfluo não tem saída. São figuras que agem no enfraquecimento dos mecanismos de defesa da população, desorganizando a produção e a descrição dos nossos sintomas sociais e culturais. Desempenham o papel de mal necessário da mediocridade e estão sempre em movimentos de liberação de energia em busca de novos arranjos para a criação de dependentes.

A proximidade entre Fernandinho Beira Mar e Luciano Huck se dá pelo mesmo modelo de sociedade que eles ajudam cotidianamente a construir; a sociedade consumidora de drogas, alucinógenas e alienantes. Eles têm a mesma idade, 36 anos, e caíram no mesmo caldeirão da superficialidade da vida. Cada qual a seu modo ergueu um império de ilusões no vácuo social causado pelo consumismo desenfreado. Representam o privilégio vão, a vida instantânea, o mundo sem limites, a lei da vantagem e a felicidade agora.

O brilhante e querido professor Milton Santos (1926 – 2001), no documentário de Sílvio Tendler, diz que ainda não temos cidadania no Brasil porque as pessoas estão viciadas a lutar por privilégios e não por direitos. Beira Mar e Huck são exemplos típicos dos estimuladores desse traço deformador da nossa seguridade democrática. A ideologia do privilégio torna o privilegiado permanentemente subordinado ao desejo, enquanto o exercício do direito pressupõe autonomia, por ele não ser dado, mas sim conquistado.

Nos últimos dias um fato curioso, envolvendo Luciano Huck, vem ocupando espaços de jornais que não necessariamente os destinados ao supérfluo. Em artigo passional, publicado na Folha de São Paulo (1/10/2007), o apresentador de tevê anunciou que poderia ter sido morto em um assalto banal que diz ter sofrido na capital paulista. Anunciou o ocorrido indignado com a petulância dos bandidos que ousaram tomar o seu relógio, mas o subtexto da mensagem que escreveu revela que ele esperava uma comoção social pelo que acha que representa.

O assunto ganhou espaços até exagerados na mídia, não por conta do relógio, do assalto em si, do espetáculo do nada, mas como denúncia de um aproveitador querendo se dar bem com o tema sensível da segurança. O tiro de Huck saiu pela culatra. A sociedade reagiu diferente do que teria imaginado Huck e seus assessores de marketing social e político. Ele ficou decepcionado. O alcance do seu desabafo teve efeito inesperado e acabou gerando um fenômeno de transferência e contratransferência, de espelhamento em seu sucesso e de negação do seu caráter, numa vulnerável contradição motivada pela quebra da ordem representacional.

Esse fenômeno de oposição à identificação também ocorreu no início do ano quando Fernandinho Beira Mar estava preso em Vila Velha, no Espírito Santo, e foi levado de helicóptero para uma audiência no Rio de Janeiro. Tanto para embarcar como para desembarcar o traficante contou com uma reforçada escolta policial, que o acompanhou em todo o trajeto, não para ele ser interrogado, mas simplesmente para que ele ouvisse as testemunhas do processo em que respondia por lavagem de dinheiro, crimes financeiros e tráfico de drogas.

A reação da sociedade com relação ao “passeio” de Beira Mar foi relativamente tão acentuada quanto a que expôs a fragilidade pública de Huck. A partir da publicação do montante destinado pelos cofres públicos ao privilégio do traficante, as pessoas começaram a se questionar sobre a razão de outros criminosos não terem nem de longe os “direitos” de Fernandinho Beira Mar. O debate estendeu-se da questão do privilégio a estudos de viabilidade de instalação de vídeo-conferências nos presídios, de forma a criar condições de os detentos participarem de audiências sem precisar sair da prisão.

Observando essas duas situações, percebo-as como resultado de um mesmo fenômeno social, dotado do sofisticado recurso de separação entre o tolerável e o intolerável. Ao se verem suficientemente aproximadas de figuras como Fernandinho Beira Mar e Luciano Huck pelo viés da violência explícita, as pessoas começam a testar as verdades que as oprimem, muitas vezes diante de programas e noticiários degradantes, que assistem por necessidade de variáveis sociais comparativas e falta de lazer decente.

Nessa perspectiva é provável que o fenômeno se dê por força do conflito entre direito e privilégio experienciado no atual processo brasileiro de integração econômica, mobilidade e emancipação social. A dificuldade de compreensão dessa descolagem entre o que é real do que é simulacro faz com que muitos de nós embarquemos na pregação de que a maneira como a sociedade rejeitou o lance político de Huck deve ser tratada com torcidas organizadas de a favor e contra. O próprio apresentador certamente daria tudo para projetar o assalto de que teria sido vítima como um ato de justiça social.

Não é demais repetir que todos os problemas do Brasil derivam de uma única questão: a baixa representatividade moral e cultural dos nossos modelos sociais. Essa deficiência de exemplaridades confiáveis piora com os bailes de máscaras que os defensores da ideologia do privilégio vêm patrocinando. Ações como a que tentou inescrupulosamente tirar proveito político do acidente com o avião da TAM e a que insiste em dizer que a extinção da CPMF é benéfica para as pessoas de baixa renda querem aparecer como manifestação espontânea da população. Não se trata de questões pessoais com Huck, Beira Mar & Cia. A falta de clareza do verdadeiro propósito dessas manifestações é o que realmente causa indignação e corrói as bases da democracia.