De carente a criativo
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno 3, página 3

Quinta-feira, 18 de Junho de 2009 – Fortaleza, Ceará, Brasil

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A visão convencional de desenvolvimento vem sendo pressionada pelo amadurecimento do sentido das políticas públicas a deixar de olhar a pobreza apenas como reduto de carências para enxergar as potencialidades culturais de pessoas e comunidades em suas dimensões transformadoras. O maior entrave às políticas de superação da pobreza está na equivocada compreensão de que este é um problema apenas de natureza econômica e assistencial, quando a questão é essencialmente cultural.

Esse conflito entre velhos e novos olhares ganhou realce no início deste mês, com o questionamento por parte do Tribunal de Contas do Estado (TCE) à aplicação de cerca de 10% dos recursos do Fundo de Combate à Pobreza (Fecop) em projetos de cultura, educação, esporte e lazer. Em tese os recursos do Fecop são destinados à população que vive abaixo da linha da pobreza e têm como finalidade a melhoria da qualidade de vida por meio de práticas significativas que dão sentido às pessoas e suas comunidades.

A superação da condição de pobreza requer um modelo de desenvolvimento que seja integral e com equilíbrio, o que torna indispensável uma política de investimentos em cultura e em suas áreas afins. Bernardo Kliksberg, depois de trabalhar na ONU, OIT, OEA e Unesco, dentre outros organismos internacionais propôs que a realidade fosse recuperada com a aproximação da cultura às estratégias de desenvolvimento.  Para ele, a mobilidade cultural tem grande importância na luta contra a iniqüidade.

Os grupos considerados pobres são muitas vezes ricos em saberes acumulados, em maneiras de se relacionar com a natureza e em capacidade de auto-organização. “A atividade cultural é vista com freqüência, a partir da economia, como um campo secundário alheio à via central pela qual se deve tratar de fazer avançar o crescimento econômico. É com freqüência tratada como uma área que consome recursos, que não gera retorno sobre o investimento, que é de difícil medição e cuja gerência é de duvidosa qualidade” (Bernardo Kliksberg, Falácias e mitos do desenvolvimento social, p. 139/140, Cortez Editora, São Paulo, 2003).

Embora ainda tratando a cultura como insumo do desenvolvimento econômico, em uma visão meramente utilitária, são muitos os esforços que vêm sendo travados nas últimas décadas com a intenção de despertar sociedades e governos para a questão. Passou-se a falar em economia da cultura, em capital social e, no lugar de indústria cultural, desenvolveu-se o conceito de indústria criativa. A percepção de que é necessário se adaptar aos tempos está em franca evolução.

Neste aspecto, ao objetar o uso de recursos do Fecop em atividades como a dos Agentes de Leitura, o TCE está indo de encontro ao amadurecimento da percepção de que a leitura deve ter a dimensão de uma política pública transformadora. A leitura é tratada por Silviano Santiago como expressão de cidadania. “A absorção política do texto analítico pelo imaginário do leitor-cidadão através da atividade da leitura é sempre contextualizável politicamente, queira ele ou não”, sentencia o escritor mineiro (O cosmopolitismo do pobre, p. 169, Ed. Humanitas/UFMG, Belo Horizonte, 2004).

Quando o governador Cid Gomes reage ao questionamento desarrazoado do Tribunal, argumentando que dar condições para que as pessoas tenham mais discernimento é um caminho definitivo para sair da pobreza, ele está negando o uso de certas necessidades coletivas, como a educação, os serviços sanitários e a cultura, somente na medida em que atendem ao progresso material da sociedade. Felipe Herrera, com vasta experiência de trabalho na Unesco, reforça essa posição ao afirmar que  “um crescente número de países está procurando novas formas que os capacitem a integrar sua cultura e sua história dentro do processo de desenvolvimento” (O contexto latino-americano e o desafio cultural, p. 73, FGV, Rio de Janeiro, 1983).

O que há de precioso nesse debate é que estamos tendo a oportunidade de enxergar claramente o confronto entre a mentalidade conservadora, manifestada neste caso pelo TCE, e o pensamento disruptivo, expresso pelo Executivo estadual, no que diz respeito aos investimentos em cultura como promoção de equidade. Em termos esquemáticos, podemos dizer que temos de um lado, a defesa da igualdade pelo nível da animalidade, da ação que se dá pela falta; e de outro, a defesa da igualdade pelo nível da consciência, da ação voltada para a oportunidade de escolha.

O que pudemos testemunhar diante desse choque público de interpretações entre o TCE e o governo cearense é que passamos por uma necessária migração da abordagem do carente para o criativo, do que tem apenas o que receber para o que também tem a dar. O estigma do necessitado começa a ceder a vez ao entendimento de que os investimentos em cultura preparam cidadãs e cidadãos para serem melhores em tudo. Afinal, o que há de mais transformador nas pessoas e nas sociedades é a prerrogativa de cada um, individual e coletivamente, se sentir capaz de cuidar dos seus sonhos e realizações.

A idéia de que o desenvolvimento está associado à liberdade de ser já estava nos escritos de Giovanni Pico (1463 – 1494) e mais recentemente tem sido recorrida por economistas como o indiano Amartya Sen, que recebeu o Prêmio Nobel de Economia de 1998, por seus estudos sobre a teoria da decisão social e do estado de bem-estar. Citado pela economista Ana Carla Fonseca Reis, na revista “Observatório Itaú Cultural” (nº 2, p.52, mai/ago/2007, S.Paulo), ele diz o seguinte: “O desenvolvimento consiste na eliminação de privações de liberdade que limitam as escolhas e as oportunidades das pessoas de exercer ponderadamente sua condição de cidadãos”.

Quando Giovanni Pico reflete que “o ser humano é o único ser que livremente pode ser mais do que já é por natureza” (Sobre a dignidade do homem, p. 33, Solivros/Uniderp, Campo Grande, 1999), ele está se referindo ao potencial da cultura. É neste ponto que os recursos para as ações culturais, especialmente aquelas que reforçam a ambiência onde a vida acontece, tornam-se fundamentais no complexo de iniciativas de superação da pobreza. O investimento em cultura leva as pessoas a desenvolverem condições de assumir o que de fato é melhor às suas vocações econômicas, sociais e políticas.

O desenvolvimento de uma sociedade depende mesmo é do comportamento das pessoas e o comportamento de cada um e do todo depende mesmo é das escolhas que culturalmente aprendemos a fazer. O princípio ativo da ação sobre a realidade está na alma social que é a cultura. E, para ser aquilo que a si mesmo propuser, não há outro caminho senão o do investimento na valorização cultural. A problemática da pobreza não pode desconsiderar as relações de confiança e a sensibilidade democrática que somente uma dinâmica cultural decente pode oferecer diante do abalo estrutural e existencial que afeta a humanidade.

A superação da pobreza está longe de ser algo dado. Ele é uma conquista que imprescinde da cultura. É na cultura que, em condições sadias, o ser humano se realiza. Os investimentos em cultura, como recurso de superação do estado de pobreza, faz transluzir integralmente a sensibilidade indispensável à equidade social. E a equidade só é possível quando as pessoas inventam a vida a partir de si e para si. Não há como sair da pobreza sem poder de ação e não há poder de ação sem o senso de liberdade e sem o senso de sentido de pertencimento e de destino nutridos na cultura.