De como Chico César deu um nó no tempo
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno 3, página 3

Sábado, 07 de Janeiro de 2006 – Fortaleza, Ceará, Brasil

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Quatrocentos e vinte segundos de fogos de artifício simbolizaram o tempo de fundação de João Pessoa na noite de reveillon. O céu da praia de Tambaú encheu-se de multiformes sinais cintilantes e coloridos. Por toda a orla famílias inteiras confraternizaram a chegada de 2006 em um saudável encontro comunitário, bonito e bom de vivenciar. Nos primeiros minutos do ano novo, as luzes do palco disposto na faixa mais larga e longa de areia se acendem e começa o show de Chico César e banda, que a administração popular de Ricardo Coutinho oferece à cidade. O espetáculo começa na “pressão” com Paraíba (Luiz Gonzaga) e o público recebe o abraço do autor de Mama África, que “de uns tempos pra cá” passou a figurar na galeria dos grandes artistas paraibanos como Jackson do Pandeiro e Elba Ramalho.

A participação do Quinteto da Paraíba deu ao espetáculo um ponto de equilíbrio entre o erudito e o popular, realçando o caráter de pluralidade da festa. Ao tocar Moer Cana, do CD novo, Chico César comenta que por não serem usineiros os trabalhadores sabem muito bem o tanto que moer cana dói. “Sobra bagaço nesse meu viver”. Esse verso me fez lembrar naquele momento de Dom Hélder Câmara (1909 – 1999) dizendo que assim como a cana-de-açúcar existem pessoas que mesmo postas na moenda só sabem dar doçura. Vejo o público aplaudir os violinos de Yerko Tabilo e Ronedik Dantas; a viola de Samuel Espinoza; o cello de Nelson Videla; o zabumbaixo de Xisto Medeiros; Chico César, a banda com Simone Soul e fico pensando no tanto que as pessoas gostam da boa música quando têm a oportunidade de apreciar.

Na primeira oportunidade que tive depois daquela apresentação parei para escutar novamente o novo disco de Chico César. Sinto que com “De uns tempos pra cá”, o compositor fecha o ciclo de entranhados sentimentos provocados por uma força desejante que oscila entre o prazer e a dor. O repertório do CD é uma inflorescência musical e poética. Tal qual as chamadas flores sésseis, suas composições foram conciliadas sem hastes temporais. São músicas feitas em distintas décadas e reunidas para traduzir confidências em arte. Foi assim que Chico César deu um nó no tempo para se entregar por inteiro na comemoração da compreensão que vai tendo da vida como resultado do seu trabalho.

As canções de “De uns tempos pra cá” nos descrevem em garrafas jogadas ao mar, como querendo anunciar ao mundo muito mais do que não dá para dizer a alguém isoladamente. É uma obra de espírito elevado. Na faixa Utopia, composta no momento frustrante da queda das Diretas-já! no Congresso Nacional, no final da década de 1980, é possível encontrar um composto de sentimentos que se estendem das modinhas de Alberto Nepomuceno (1864 – 1920) à atual crise política no Brasil. “Todo mundo que se veste com a roupa da utopia / sofre tanto / sofre muito / eu estava nu e não sabia”, diz a canção. Nessa mesma linha de atualidades no campo político, o CD traz Cálice (Gilberto Gil / Chico Buarque), composta nos tempos negros da ditadura militar.

No show na praia de Tambaú, Chico César tocou Mand´Ela logo depois de exaltar o líder sul-africano Nelson Mandela como uma referência de grandeza a iluminar a pequenez reinante no cenário político brasileiro. A galera cantou e aplaudiu. O caráter reflexivo da obra pede discrição no figurino e na performance de Chico César e ele atende, assinando o fechamento do decênio com cabelos cortados, óculos de quem já passou dos quarenta, camisa e calça casuais e demonstrando que também pode estar contente com menos do que aquilo que o tornou referência na MPB. Para receber o Quinteto da Paraíba no palco adicionou apenas um blazer branco igual ao dos demais componentes do grupo. A sonoridade camerística resultante da participação das cordas paraibanas lembra o primeiro CD de Regina Machado, Sobre a Paixão (Dabliú / 2000).

O CD é uma crônica desses tempos de incerteza. Seu conteúdo reflete a necessidade do prazer de sentir. Darcy Ribeiro (1922 – 1997) dizia que para viver serve até sofrer. Acho que “De uns tempos pra cá” tem essa filosofia. O simples fato de cantar a ferida é uma maneira de promover a cura. É também um jeito de chegar na última faixa em clima de rave de pegada boa como em Orangotanga, música que em 2000 deu nome a uma turnê européia de Chico César. “Olha, foi jóia / mas agora é miçanga”. É incrível como muitos autores acabam ficando reconhecidos não por suas obras mais relevantes, mas por aquelas que foram de maior interesse para a indústria cultural. Recordo de ter lido nos tempos de faculdade um texto de Gabriel Garcia Márquez falando do escritor russo Boris Pasternak (1890 – 1960) e lamentando pelo fato dele ter-se tornado conhecido mundialmente por um romance mediano que virou filme, intitulado Dr. Jivago, e não pelo grande poeta que foi.

Na letra de “De uns tempos pra cá” é fácil observar o sentido crítico que Chico César reserva à deificação dos objetos. “Coisas são só coisas / Servem só pra tropeçar / Têm seu brilho no começo / Mas se viro pelo avesso / São fardo pra carregar”. A vontade de sair vendendo o que antes quis comprar, como forma de poder alcançar o outro, que fica normalmente esquecido por trás dos símbolos do consumismo, é o combustível da análise da psicóloga Fátima Severiano dentro dos ideais de consumo na contemporaneidade. Trata-se de um tipo de narcisismo que vem migrando mais e mais de uma perspectiva clínica para o campo cultural.

Mas como terá sido mesmo que Chico César deu um nó no tempo? Pelo que tenho visto em seus shows e escutado em seus discos, acho que fechando bem fechado o ciclo dos dez anos, durante o qual surgiu para o primeiro time da MPB e foi ao topo da zona de celebridade, mas quando quis ser ele mesmo, gravar um disco de canções não foi tão fácil como se pensa. O mundo do sucesso exagerado é uma prisão. Diferente das pessoas que só viajam para poder voltar, Chico César retornou à plataforma original para poder seguir com a liberdade de poder continuar viajando. E não adianta especular como será o próximo ciclo. Seu destino é divisível por todas as partes. Portanto, será como for.