O compositor e cantor paulista Itamar Assumpção (1949 – 2003) sempre teve presença frequente no meu som. Durante a minha vida estudantil, tudo o que ele tocava me tocava. Certo dia, cheguei na loja da Francinet Disco, em Fortaleza, na minha busca por lançamentos da produção independente, e dei de cara com o LP “A Maior Bandeira Brasileira” (1990), de Denise Assunção (1956 – 2024). Vi que acima do nome da cantora estava escrito “Atriz”.

A edição era da Baratos Afins, selo do incrível Luiz Calanca, produtor que, a partir da Galeria do Rock em São Paulo, abasteceu a minha juventude de grandes obras alternativas da Música Plural Brasileira. Apressei-me para ver quem estava com ela naquele álbum: Adriano Augusto (teclados), Celmo Reis (guitarra), Marcus Vinícius Borba de Melo (bateria) e Homero Feijó (baixo), que fez também os arranjos, a partir de concepções de Itamar Assumpção.

Itamar estava ali como compositor em sete das oito faixas do disco. Desconfiei que ela fosse irmã dele, mas antes da internet, do celular e das plataformas digitais a gente levava um tempo para ter acesso a determinadas informações. Comprei o disco (que ainda tenho comigo) e escutei um pouco de cada música ainda na loja, antes de ir para casa. Não via a hora de escutar tudo, na sequência do vinil, como quem lê o enredo de um livro capítulo após capítulo.

No ônibus, detive-me minuciosamente no desenho da capa, assinado por Eva Pinheiro. A paleta creme realçava uma pipa (arraia) com as cores da bandeira brasileira, empinada por um menino, num cenário de favela. Um pouco deslocada do centro, em foto de Glória Flüsel, Denise Assunção olhava vigilante para o lado contrário, como se até o ato de brincar estivesse ameaçado naquela realidade.

Detalhe da capa do álbum “A Maior Bandeira Brasileira” (1990), de Denise Assunção.

Suingado, inquieto e surpreendente, “A Maior Bandeira Brasileira” chegou e permanece como uma obra de referência da música urbana negra e periférica do país. A interPRETAção de “Baby” (Itamar Assumpção) sintetiza bem a imagem da capa: “Baby, não se assuste / Hoje o tempo é de terror / Nosso céu ainda chora / Nos telhados da cidade / E a nossa amizade / A tudo resiste // Baby, nada existe / Resguardando nossas vidas”.

O repertório traz parcerias oriundas das relações construídas no tempo em que Denise e Itamar (nascidos em Tietê, interior de São Paulo) moraram no Paraná, acompanhando o pai em seu trabalho de fiscal do Instituto Brasileiro do Café (Alice Ruiz, Paulo Leminski e Neuza Pinheiro), e uma regravação, “Pulsars e Quasars”, das amizades paulistanas com o carioca Jards Macalé e o baiano Capinan: “Os novos seres saem de nós / Sem voz / Os ruídos terão sentido / Em teus sentidos perdidos”.

A música de abertura do álbum de Denise Assunção, “Nosso Pai”, é um poema dela musicado pelo irmão: “Preto (tu deste) black out”. Muito bonita e muito forte, uma composição de saudade, que carrega a expectativa da morte como uma mudança para algum território diferente: “Aí é um país?”. Anos antes, Denise arrasara cantando “Sexto Sentido” (Itamar Assumpção / Ricardo Guará) no álbum Intercontinental de Itamar: “É preciso estar silêncio / Pra eu não ficar aflito / Mas em mim existe um grito / Que não posso mais calar”.

Denise Assunção, como informa a palavra “Atriz” na capa do seu único disco, mesmo tendo participado de gravações de álbuns do Itamar, integrando a banda Isca de Polícia, dedicou-se mais prioritariamente às artes cênicas, sempre se negando a fazer papel de escrava e de empregada doméstica nas suas atuações em minisséries televisivas, em filmes e no teatro. Segurou essa postura digna até seguir de pipa para o céu, no último dia 4, e ter seu corpo velado, dia 5, no libertário Teatro Oficina Uzyna Uzona.

Fonte
Jornal O POVO