Desenvolvimento e cultura
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno 3, página 3

Quintas-feiras, 01 e 08 de Outubro de 2009 – Fortaleza, Ceará, Brasil

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Parte I, publicada em 01 de Outubro de 2009

O Brasil vem se preparando para chegar ao futuro e não há futuro sem políticas públicas estáveis para a cultura. Como o modelo brasileiro atual conta apenas com 0,5% das receitas federais (cerca de insignificante R$ 1,3 bilhão) e com incentivos baseados em renúncia fiscal, portanto oscilantes conforme os nervos do mercado, a situação do País é crítica, num cenário mundial onde a cultura é priorizada pelas nações como componente estratégico do desenvolvimento.

A cultura é o lastro de sustentação de uma sociedade, a garantia da sua integridade no sistema de relações entre os povos. Sem ela, os avanços sociais e econômicos importantes que vêm sendo conquistados estarão sempre vulneráveis e não há como esperar que as promessas de educação se realizem. Mais do que indutor do crescimento, o Estado precisa ser comprometido com o desenvolvimento. E para que haja desenvolvimento é preciso que a nação seja culturalmente forte e respeitada por sua força cultural.

O presidente Lula costuma dizer que o nosso maior problema vem de um comportamento subordinado à ideia de país de segunda classe. Movido pela compreensão de que niguém respeita quem não se respeita, ele partiu bravamente com seu governo para a abertura multipolar da política e do comércio exterior, com fortalecimento de laços multilaterais e a diversificação da balança comercial. Respaldado pelo potencial de uma cultura futurista, com uma mesma língua e um território continental, tratou de garantir a existência de um mercado interno e de realizar a neutralização da dívida externa.

O Brasil que anos atrás sofreu de grave apagão elétrico e racionamento de energia está seguro por décadas, simultaneamente em energia fóssil e renovável, e caminhando para uma matriz energética predominantemente limpa. O potencial petrolífero da camada do pré-sal, nas águas profundas da costa brasileira, está sendo trabalhado para mudar o paradigma do modelo mental de colonizado que ainda insiste em manter a população à margem das suas próprias riquezas. Não tem sido fácil porque não nos preparamos culturalmente para tamanha alteração no nosso destino.

O governo brasileiro recebia ordens de como agir e de como aplicar pacotes econômicos preparados pelo G7 (Alemanha, Canadá, Estados Unidos, França, Itália, Japão e Reino Unido) e agora vem liderando um processo de pressão para a aceitação por parte desses e de outros países, cultural, político e economicamente dominantes, no que diz respeito à participação de outros povos na modelagem da governança planetária. Para assumir esse papel de destaque na ampliação da representatividade global, a diplomacia na gestão Lula quebrou o protocolo da submissão, em um grandioso gesto de superação cultural.

Dos passos que estão sendo dados nesse sentido, o que pretende implantar o que seria uma reforma cultural parece-me extremamente necessário e de grande urgência. Favorável a essa reforma do olhar, do sentir que sente, viajei a Brasília no dia 23 de setembro passado, a convite do Ministério da Cultura, para acompanhar a discussão e a votação da Comissão Especial constituida para dar parecer, dentre outras, à Proposta de Emenda Constitucional nº 150, a PEC da Cultura, que propõe o percentual de vinculação de 2% do orçamento Federal para a cultura, o que corresponde a algo em torno de R$ 5,3 bilhões.

Como havia sido feito um pedido de vista do processo (recurso democrático que tira a proposta da pauta para análise) ficara no ar a expectativa de que algum lance político pudesse tentar prorrogar a votação, com a inclusão de substitutivos que inviabilizassem a aprovação. O debate e a votação foram acompanhados por artistas, produtores, gestores culturais e interessados no desenvolvimento sustentado, que defendem que as políticas públicas deixem de ser paliativos, consituindo-se como um direito humano, condição que torna a universalização das oportunidades culturais uma prática indispensável ao exercício pleno da cidadania.

O debate teve um bom nível. Após ouvir as ponderações dos colegas, o deputado Raimundo Gomes de Matos (PSDB-CE) retirou sua proposta de substitutivo que, segundo o parlamentar, tinha como motivo evitar que os critérios de rateio fossem definidos por lei complementar e isso retardasse a inclusão da dotação pretendida no orçamento de 2010. A preocupação apresentada pelo deputado cearense já estava contemplada em uma disposição transitória que remete os critérios de rateio aos percentuais aplicáveis aos Fundos de Participação dos Estados (FPE) e Municípios (FPM), até que a lei complementar entre em vigor.

Apenas uma pequena alteração na redação, proposta pelo deputado Zezéu Ribeiro (PT-BA), foi feita em rápido consenso. No trecho da PEC 150, que determina a aplicação anual de “nunca menos de 2% por parte da União, 1,5% pelos Estados e Distrito Federal e 1% pelos Municípios, da receita resultante de impostos, “na preservação do patrimôniou cultural brasileiro e na produção e difusão da cultura nacional”, ficou acatado pelo relator, deputado José Fernando Aparecido (PV-MG), que a palavra “nacional” seria substituída por outra que não apresente risco de interpretação que venha a se valer de parâmetros xenófobos. Paz no plenário.

A aprovação das PECs 324 (2001), 427 (2001), 150 (2003)  e 310 (2004), respectivamente dos deputados Inaldo Leitão (PSDB-PB), Régis Cavalcante (PPS-AL), Paulo Rocha (PT-PA) e Fábio Feldmann (PSDB-SP), feita por unanimidade pelos membros da Comissão Especial, caracteriza um momento histórico para o desenvolvimento brasileiro: o inicio do tratamento da cultura efetivamente como um Direito Social, como está determinado na Constituição Federal de 1988 (arts. 215 e 216).

A República começa a assumir que precisa prover os meios necessários à preservação, proteção e divulgação do patrimônio cultural material e imaterial brasileiro, considerando nesse escopo os bens tomados individualmente ou em conjunto, que sejam portadores de referências à identidade, à ação e à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade. A Comissão Especial vinha analisando as PECs desde 8 de abril deste ano, sob a presidência do deputado Marcelo Almeida (PMDB). Vale dizer que o relator é filho do primeiro Ministro da Cultura, José Aparecido, que assumiu o cargo em 1985, por indicação de Tancredo Neves.

A estabilidade de aporte de recursos públicos nos três níveis federativos permitirá maior integração institucional, regional e setorial, dinamizando a cidadania cultural e contribuindo com o desenvolvimento econômico e social. Para assegurar a co-responsabilidade pela gestão da cultura, a proposta determina que a União destine 20% aos Estados e Distrito Federal e 30% aos Municípios do total dos recursos destinados à promoção da economia da cultura e da cidadania cultural.

Aprovada na Comissão destinada a examinar e a dar parecer às PECs da Cultura, o tema seguirá para votação em dois turnos na Câmara dos Deputados e mais dois turnos no Senado Federal. O discernimento apresentado pelos parlamentares integrantes da Comissão Especial sinaliza para a clareza e a importância do propósito e revela que a cultura está assimilada como uma prática social indispensável ao desenvolvimento. Este será um momento de observação do compromisso de deputados e senadores com o projeto brasileiro de ser verdadeiramente um país influente na nova ordem mundial. (a parte final deste artigo será publicada na próxima quinta-feira, dia 8/10/2009).

Parte II, publicada em 08 de Outubro de 2009

A proposta de estabelecimento de uma dotação orçamentária para a Cultura é um dos temas mais importantes a serem votados ainda este ano pelo Congresso Nacional. Para ser realmente sustentado o desenvolvimento precisa de uma política continuada de cultura. Além da PEC 150/2003, que garante até 2% dos recursos federais, 1,5% dos estaduais e 1% dos municipais para a Cultura, outras propostas de emenda constitucional (PECs) e projetos de lei (PL) estão prontos para entrar na pauta de votação da Câmara e do Senado.

Das PECs e PLs com os quais o Ministério da Cultura (MinC), apoiado por artistas, produtores e gestores culturais, pretende construir uma nova institucionalidade para a cultura brasileira, convém destacar como de grande relevância o Vale-Cultura (democratização do consumo cultural), o Fundo Pró-Leitura (financiamento das ações de promoção do livro e da leitura), a nova Lei Rouanet (financiamento das atividades culturais), o Simples da Cultura (ajuste pertinente da carga tributária às empresas do setor), o Sistema Nacional de Cultura (rede de articulação federal, estadual e municipal, para a gestão e promoção de políticas culturais), o Plano Nacional de Cultura (estabelecimento de políticas públicas de cultura em todo o País) e a PEC 236/2008, que coloca a Cultura na Constituição como um direito social, assim como a Saúde e a Educação.

O único projeto que suja a intenção do MinC na transformação da cultura em uma política de Estado é o que os burocratas chamam de Modernização do Direito Autoral. Não que a Lei 9610/1998 não deva ser adequada aos tempos das práticas digitais, mas pelo fato de o governo federal ter imposto agressivamente a utilização do novo sistema de copyright dos Estados Unidos, o Creative Commons, como padrão brasileiro, tomando o partido das transnacionais hegemônicas do pós-neoliberalismo, em detrimento do nosso patrimônio cultural, tema que tratei neste espaço em cinco artigos (DN, de 4 de dezembro de 2008 a 15 de janeiro de 2009).

Em que pese este equívoco entreguista do Ministério da Cultura, ao forçar a cessão gratuita dos nossos conteúdos para a comercialização por parte das grandes empresas do mercado digital, camuflada de cultura livre, não encaro essas ações como dirigismo estatal. Prefiro chamar de ativismo cultural tudo o que vem sendo feito, e bem feito, pelo MinC. Desta forma, resta-me fazer coro com os que acreditam na sensatez do ministro Juca Ferreira, para que o propósito que levou o ministério a impor o modelo de lincença do Creative Common possa ainda ser atendido por um sistema menos subordinado aos interesses do mercado e mais próximo do respeito que o Brasil vem tecendo com tanta maestria no diálogo global.

Na campanha Vota Cultura, que desde o mês passado procura mobilizar parlamentares na votação das emendas e projetos que elevarão a cultura à condição de posicionamento estratégico, como a agricultura, a indústria, a ciência e a tecnologia, eu faria apenas essa ressalva no projeto de Modernização do Direito Autoral. As demais proposições me parecem encomendas públicas legítimas e bem conduzidas, dignas de um Brasil que caminha para o desenvolvimento sustentado. A cultura, como setor, deve ser tratada mesmo como negócio; mas não podemos esquecer de que há uma parte significativa da cultura que é outra coisa, que é direito humano. Portanto, será lamentável se prosperar essa equivocada decisão oficial de dar aos nossos conteúdos culturais o mesmo destino do pau-brasil, do açúcar e do ouro.

O que está em questão nessa abordagem de desenvolvimento e cultura é a inflexão política que está ocorrendo em um País que tem demonstrado grande habilidade quando pensa por si e se afirma no mundo como autêntico líder continental. A ilustração mais recente de tudo isso acaba de acontecer, com a conquista da atração dos Jogos Olímpicos de 2016 para o Rio de Janeiro, em acirrada disputa com Chicago (EUA), Madri (Espanha) e Tóquio (Japão).

Mudar a nossa relação com a cultura é uma maneira de libertar o sujeito social que nela se movimenta. A cultura, diz o deputado José Fernando Aparecido (PV) em seu relatório, aprovado na Comissão Especial, incorpora elementos simbólico-constitutivos que fundamentam a subjetividade natural de nossas interpretações do mundo, o sentimento de pertencimento a grupos sociais e o reconhecimento do outro como semelhante e diverso ao mesmo tempo em que abre espaços para a interação e cooperação social.

O fortalecimento da cultura traz as relações do mercado para o plano social que o originou, ao mesmo tempo que a recebe no interior da subjetividade que lhe dá razão de ser. O mercado, mesmo tendo grande importância na produção e circulação de bens e serviços culturais, não atende sozinho às condições necessárias para a criação de uma base de acesso da população ao usufruto do patrimônio cultural. Com os recursos almejados na PEC 150, o MinC, as secretarias estaduais e municipais de cultura, passam a ter condições de contribuir para a redução da estandartização das pessoas e das iniquidades regionais, econômicas, sociais e étnicas.

Sem cultura, de pouco valerá a riqueza da biodiversidade dos nossos biomas. A conversão da riqueza biológica da Amazônia, da Caatinga, do Cerrado, da Mata Atlântica e do Pantanal em riqueza econômica passa pela cultura, pois somente nos dando valor saberemos dar valor ao que temos. Uma parte da economia é produto, mas o produto da outra parte é a própria vida, a maravilha de viver. Sem cultura, bichos, plantas e bactérias não passam de mercadorias a serem exploradas à exaustão da fertilidade.

É pela cultura, como garantia de aceitabilidade do desenvolvimento, que podemos dar respostas verdadeiramente humanas aos problemas ambientais, demográficos, democráticos, pandêmicos, energéticos e de segurança alimentar. O ponto crucial do desenvolvimento não é a educação, mas a cultura. Por não percebermos isso, a sociedade brasileira vem sedimentando uma incrível democracia empírica, capaz de driblar arranjos e mais arranjos político-econômicos, mas ainda não conta, salvo isoladas exceções, com o suporte de uma teoria não-colonial, que esteja à altura da sua consistência.

Já são consumidas mais de duas décadas desde que o Brasil passou a ter um Ministério da Cultura. Apesar de à época ter sido contra a separação das pastas da cultura e da educação sempre vi na criação do MinC uma oportunidade para mudarmos a perspectiva dos nosso desenvolvimento. O Brasil é hoje uma sociedade relativamente avançada em termos de transmissão de dados e de informação e em diversos padrões tecnológicos de comunicação. Sabemos facilmente nos movimentar na dinâmica das redes, mas não sabemos muito bem para quê, devido ao descaso com a cultura.

Avançamos em nossa sabedoria miscigenada e parte significativa das nossas lideranças políticas, econômicas e intelectuais estão tendo dificuldade de acompanhar os passos da sociedade, de forma a transformar essa pujança em desenvolvimento: as pessoas querem direitos e a política oferece privilégios; as pessoas querem cidadania e as empresas tergiversam com a retórica da responsabilidade social; as pessoas querem autores que as inspirem e os lobistas do mercado de conteúdos dizem que o autor morreu; as pessoas querem comunhão e os especialistas estimulam ressentimentos e promovem divisões; as pessoas querem ser fraternas e solidárias, mas são sufocadas por toda sorte de papel modelo a pregar a rivalidade e a competição.