Desventuras de Moby Dick
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno 3, página 3

Quinta-feira, 01 de Julho de 2010 – Fortaleza, Ceará, Brasil

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Todos os anos os países que integram a Comissão Baleeira Internacional (CBI) se reúnem para tratar de assuntos econômicos e suas implicações políticas e ambientais relativas à caça à baleia. O encontro deste ano aconteceu na semana passada (de 21 a 23 de junho) em Agadir, no Marrocos. O principal ponto de pauta foi a proposta japonesa de retorno à captura comercial desse cetáceo, com base em cotas de redução de abate e monitoramento, de forma a suspender uma moratória internacional firmada há 25 anos.

O Japão caça por ano cerca de mil baleias somente na Antártida e alega que é para fins científicos. A Noruega e a Islândia não aceitam as regras internacionais, sob o argumento de que a caça comercial a baleia faz parte de suas tradições. A Coréia do Sul, animada com o descaso no setor, sinaliza com o interesse de retomar atividades baleeiras. Entre estes e outros, o Japão é conhecido como o principal vilão, por supostamente desrespeitar a moratória, caçando com o respaldo de acordos de “cooperação” econômica feito com pequenos países do hemisfério sul, sob o pretexto de segurança alimentar e desenvolvimento econômico.

É comum o uso dos verbos pescar e caçar quando a ação é de captura de baleias. Embora sabendo que pesca se aplica comumente a tudo o que se apanha na água, prefiro neste caso utilizar o termo caça, por serem as baleias animais mamíferos e porque a palavra significa a perseguição de um animal a outro, com intenção de abate. Na história da relação do ser humano com esses cetáceos, a característica de caça salta da noção primitiva de predador para a do infortúnio da extinção, causado pela captura industrial inconsequente. 

Na reunião de Agadir os ativistas ambientais ficaram de fora da mesa de negociações da CIB, formada por 88 países. Algumas entidades ambientalistas, na tentativa de colocar alguma ordem no descontrole, chegaram a considerar o recomeço da caça comercial, desde que respeitada a proibição da caça de espécies ameaçadas de extinção, a proibição de venda dos produtos derivados da caça científica no mercado internacional e a suspensão da caça nos mares da Antártida.

A portas fechadas, a CIB não conseguiu chegar a um consenso. A Austrália, que tem área de influência direta na Antártida, se opõe a qualquer saída que não seja o fim da caça. A proposta australiana é de reformulação da CIB, de modo a atualizar seu perfil geopolítico e econômico desenhado no pós-Segunda Guerra. Entretanto, apesar do declínio das populações de baleias, comprovado pelo comitê científico da CIB, não houve avanços na reunião. 

Acompanhei essa discussão instigado pela lembrança que tenho da noite em que, ainda estudante do ensino fundamental, estive em Cabedelo numa excursão colegial para conhecer o navio arpoador japonês que todo ano vinha ao Nordeste para caçar baleias. Era o mês de novembro ou dezembro de um dos anos da primeira metade da década de 1970. Recordo do momento que os três filhotes de baleia, com cerca de seis metros cada um, foram rebocados do mar para o navio por um guindaste. Na subida da rampa, o sangue descia misturado com as águas agitadas. Depois, os animais foram postos dentro de um tanque para serem lavados e, em seguida, apresentados no convés para serem retalhados. Homens com instrumentos de lâminas afiadas e outros com ganchos nas pontas fizeram o trabalho com uma presteza e uma rapidez surpreendente.

As mantas de carne e de toucinho eram arrastadas por puxadores mecânicos, enquanto ficávamos vendo o “espetáculo” em umas arquibancadas próprias para turistas. O mar estava agitado. Luzes amarelas refletiam brilhantes no claro e escuro do pavimento. Ofereceram-nos carne de baleia. Comemos. Quem comprou partes das barbatanas, que flexionadas pareciam cocares indígenas, achou bonito, mas se arrependeu depois, quando a peça cartilaginosa começou a exalar mau cheiro. E isso aconteceu ainda no ônibus, quando retornávamos da capital paraibana para Independência, no interior do Ceará, uma viagem de aproximadamente 800 quilômetros.

Tudo tinha um viés essencialmente econômico. Os apresentadores explicavam que o óleo da baleia servia para liga de argamassa, lubrificação e iluminação pública; que a carne desidratada e o toucinho eram excelentes para a longevidade humana; e que os ossos triturados serviam para adubo agrícola e ração animal. Ninguém dizia, por exemplo, que as fezes das baleias são ricas em ferro e que a natureza as utiliza para adubar plantas marinhas, que, por sua vez, contribuem para a captura de carbono no mar. 

O tempo passa e a consciência das coisas muda com a dinâmica do mundo. Hoje, não teria qualquer sentido um grupo de estudantes se deslocar para conhecer a “caça à baleia”, mesmo se ela ainda existisse no Brasil. No máximo, as escolas devem fazer visitas ao Museu da Baleia, em Lucena, município separado de Cabelo pelo rio Paraíba, onde há fotos, ossadas e instrumentos utilizados na caça à baleia. 

Ao assistir à cerimônia do processamento da baleia, senti-me como o personagem Ismael, do livro Moby Dick, do escritor estadunidense Herman Melville (1819 – 1891). Prendi a respiração como ele. Eu, ao ver a primeira baleia arpoada; ele, ao embarcar no Pequod, navio baleeiro destinado a singrar os mares de todo o mundo na captura de Moby Dick. Procurei ter coragem. Seguir a lição de Starbuck, o primeiro imediato do Pequod. Ele dizia que só queria trabalhar com homens que tivessem medo de baleia. Aos 30 anos de idade ele já era um filósofo; sabia que os caçadores mais corajosos são aqueles que têm prudência. Eu tinha menos da metade da idade dele e estava pela primeira vez vendo uma baleia de perto. Na minha cabeça rodava o mito de Moby Dick, a baleia incaçável, o terror dos arpoadores. 

Querendo ou não, eu estava na costa brasileira, por onde o Pequod certamente passara. Se ele saiu de ilha de Nantucket, no leste da América do Norte e contornou o sul da América do Sul pela Patagônia é porque desceu pelo nosso litoral. O mesmo espaço marítimo procurado para alimentação e acasalamento pelas baleias que fogem das águas frias do inverno antártido. O mesmo trecho de oceano onde a Companhia de Pesca do Brasil, Copesbra, empresa hipoteticamente nacional, controlada por japoneses, matou milhares de baleias por 75 anos, entre 1910 e 1985, ano em que a CBI apelou ao recurso da moratória, para evitar a inviabilização do negócio da caça à baleia em todo o mundo. 

Além da preocupação econômica, a decisão da CBI atendeu a pressões da Conferência da ONU sobre o “Meio Ambiente Humano”, realizada em Estocolmo, na Suécia, em 1972. Em 1987, no governo José Sarney, o Brasil fechou a fábrica japonesa de processamento de baleias em Cabedelo e, em 2008, o presidente Lula ratificou o interesse do País na preservação de baleias e golfinhos, ao assinar um decreto instituindo a zona costeira do Brasil como santuário de baleias e golfinhos. 

Sendo este um combate que vem de longe, talvez a lição também deva vir de longe: o Pequod naufragou juntamente com o capitão Ahab e sua insensatez. Diz Ismael, o único sobrevivente, que depois da tragédia, o mar parecia tranqüilo, como se nada de terrível tivesse ocorrido. Ele viu o mais famoso dos baleeiros desaparecer, mas não tem notícias do paradeiro da grande baleia branca. Diante de tudo isso, retomo a leitura de Moby Dick para escutar o oficial Starbuck indagando ao capitão Ahab: “Capitão, é mesmo indispensável matar Moby Dick?”.