Nas mais diversas culturas e em todos os tempos, pais e mães tendem a dar a filhas e filhos tarefas de vida nem sempre apropriadas aos seus fluxos de satisfações vitais. Esse drama de qualquer configuração familiar é o tema central do filme Revenge/Vingança (1989), do escritor coreano-russo Anatoli Kim, dirigido pelo cineasta cazaquistanês Yermek Shinarbayev e restaurado (2010) pela WCF, fundação do diretor estadunidense Martin Scorsese.

Em exibição na plataforma MUBI, a obra, dividida em oito partes, sendo um prólogo e sete episódios, mostra em 100 minutos o quanto o dever filial –quando a pessoa do filho ou da filha assume como missão existencial expectativas paternais e maternais – é um padrão de comportamento desfavorável ao indivíduo e à coletividade na evolução humana.

Lançado no ano em que houve a desarticulação da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), Revenge distribui o enredo em três momentos e circunstâncias sociais distintas: no século 18, na corte real coreana; em 1915, em uma aldeia rural da Coréia, com extensão por território chinês; e nas décadas de 30 e 40 do século 20, com a expansão da diáspora coreana pela Ásia Central, chegando à costa da Sibéria, no oriente russo.

Com exceção do prólogo, que requereu detalhes próprios de uma corte imperial, a produção de Revenge é tecnicamente simples, oscilando entre celeiros e habitações sombrias e a imensidão das paisagens montanhosas e das estepes áridas do Cazaquistão. Marcada pela estética do deslocamento, essa raridade de filme tem como ponto de atração principal o modo profundo com que aborda as pressões familiares sobre os destinos das crianças.

O isolamento de Sungu ao receber dos pais a missão de ser o vingador da morte da sua meia-irmã, que ele sequer conheceu. Foto de divulgação do filme Revenge/Vingança (1989), do escritor coreano-russo Anatoli Kim, dirigido pelo cineasta cazaquistanês Yermek.

Em uma época em que o ensino se dava por meio da poesia (assim como aconteceu no Nordeste brasileiro com a literatura de cordel), o filme revela tanto o instrutor severo e bêbado, capaz de assassinar uma aluna que se desconcentrou na hora da lição, quanto o professor que sabe ouvir e despertar as crianças para o fato de que, mesmo nunca se tendo visto um lírio branco, isso não quer dizer que ele não exista.

A cena desse mestre com o menino que recebe dos pais a missão de matar o assassino de sua meia-irmã, que ele sequer conheceu, é fascinante. Ele pergunta se os poemas têm vida independente como as flores e as borboletas, para, com a negativa do garoto, obter a condição de dizer que um novo poema nasce do esforço de alguém extraordinário. E complementa: “Cuide-se. É graças a você que o mundo está fadado a receber poemas únicos”.

Na corte imperial, o príncipe, após notado pelo pai como perdedor de uma luta, brincando com o seu melhor amigo, recebe a obrigação de se tornar o mais forte guerreiro do reino até os 20 anos. Não consegue. Torna-se um tirano, a ponto de o poeta, seu amigo de infância, pedir-lhe a autorização para viver fora do palácio, sob o argumento de que a brutalidade do governante seca a sua fonte criativa.

A aplicação do dever de família destruiu a sensibilidade de uma criança que se tornou imperador, mas não a do poeta que, para não perder a inspiração, preferiu as adversidades do mundo fora da suntuosidade palaciana. Com Sungu, o poeta protagonista do filme, o peso do compromisso familiar de ser um vingador neutralizou a sua capacidade de emocionar-se.

A responsabilidade de ter sido gerado para cumprir o desejo de vingança dos pais é muito forte para uma criança que em um dia muito frio criou um poema sobre a neve, o céu e a terra, e o recitou para a mãe, que era muda, enquanto ia com ela para a aula… e, naquele momento, ela sentiu o saber da iluminação. Revenge tem esse poder de transitar entre a amargura e a beleza, o instinto de violência e a poesia.

Fonte
https://mais.opovo.com.br/colunistas/flavio-paiva/2023/04/25/dever-de-familia.html