Dia de sol em Machu Picchu
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno 3, página 3

Quinta-feira, 21 de Janeiro de 2010 – Fortaleza, Ceará, Brasil

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No dia em que chegamos a Machu Picchu fazia sol. Era o domingo 3 de janeiro de 2010. As camadas de picos em tons diferentes de verde, azul e branco, com encostas rajadas de granito, faziam inveja a qualquer aficionado por filme de animação em 3D. Os dias anteriores tinham sido de chuva e o seguinte também. O clima de Machu Picchu é instável, com alternância de sol e chuva e temperaturas que variam entre 13ºC e 19ºC. Aquele dia de sol me deu a pretensa sensação de que o lugar queria se mostrar. Respeitei o desejo da beleza e da grandeza, olhando o que pude olhar, até onde a vista e a minha curiosidade etnocultural alcançaram.

Machu Picchu é a enigmática cidade sagrada dos incas, construída no apogeu do império tawantusuyano (entre os séculos XV e XVI) em um lugar tão protegido pela geografia andina que nem os espanhóis huaqueros (saqueadores de tesouros arqueológicos) a conheceram. Exceto pela presença invisível de um ou outro camponês que, como a natureza, reocupou despretensiosamente o lugar depois que ele foi abandonado, o santuário inca só se tornou amplamente conhecido depois que várias expedições iniciadas em 1911 trataram de fustigar seus segredos.

Na década de 1940, o poeta Pablo Neruda (1904 – 1973) subiu as ruínas de Machu Picchu e escreveu que aquilo ali era um “alto arrecife da aurora humana”, em versos que constam no livro Canto Geral. Em 1952, foi a vez do guerrilheiro Che Guevara (1928 – 1967) passar por lá e registrar em suas Notas de Viagens que a cidade inca guardava em seu recinto “os últimos vestígios de um povo livre”. E assim, os olhares sobre Machu Picchu foram ganhando proporções encantadoras e o lugar passou a ser destino de aventureiros, mochileiros e tempos depois desenvolveu uma boa estrutura de serviço turístico-cultural.

Antes de tudo, Machu Picchu encanta por ser a cidade que preserva a memória da essência da cultura e da espiritualidade inca. Estima-se que ali moravam cerca de 500 pessoas, embora em dias especiais a cidade pudesse receber até mil visitantes. Era um laboratório, habitado pelos guardiões da ideologia incaica, por um seleto grupo de mestres, sacerdotes, artesãs e astrônomos e onde funcionava a Casa do Saber (Yachaywasi), a escola de preparação dos líderes do Estado de Tawantisuyo. É considerada oficialmente um Santuário Histórico peruano e Patrimônio Cultural da Humanidade, pela Unesco. O parque é administrado pelo governo do Peru, por meio do Instituto de Recursos Naturais e do Instituto Nacional de Cultura.

A cidade (Llaqta) está a 2.400 metros do nível do mar e fica na cordilheira de Vilcabamba, no alto da margem esquerda do rio Vilcanota (Wilkamayu), que cruza o vale sagrado com o nome de Urubamba. O hotel que fiquei com a minha família na cidade de piscinas públicas termo-medicinais de Águas Calientes, tem parede de vidro voltada para o rio Urubamba. O som constante das águas anuncia uma energia vital que nasce do degelo dos picos nevados, agita a fertilidade do Vale Sagrado, segue até o rio Amazonas, atravessa o continente de oeste a leste e deságua no litoral atlântico brasileiro.

Dá gosto apreciar os detalhes da sua arquitetura sólida e integrada com a natureza, com altíssimos muros inclinados, janelas e nichos trapezoidais, sistema de canalização de água, terraços agrícolas, terraços para ornamentação e de cotenção, templos, escola, vivendas, alojamentos, oficinas de produção artesanal e suas cinco praças para cultos, festividades e atividades desportivas. O granito branco, resultante de magma do período paleozoico, rico em componentes magnéticos, as pedras polidas com areia e água na cantaria (Rumiqolqa) local e o desenho da urbe, como uma malha de pontos de pedras deitada sobre a montanha, compõem uma fascinante plasticidade urbanística.

Uma particularidade maravilhosa da arquitetura inca é a forma como as pedras enormes foram meticulosamente talhadas. Como eles ainda não conheciam os instrumentos de ferro nem tinham dinamite para partir grandes blocos, eles quebravam as rochas nas suas linhas de esfoliação, com ferramentas de bronze e hematita. Suponho que usassem fogo para fazer as pedras estalarem. O polimento das poderosas peças rochosas, que ainda hoje impressiona, era feito com areia e água. Para garantir os ajustes entre pedras com formas tão variadas os canteiros incas faziam maquetes de argila em moldes de madeira. No recinto dos nichos acústicos, há uma pedra com 26 ângulos, todos com suas respectivas pedras de encaixe na formação da parede.

Observei o símbolo principal do império Tawantinsuyo esculpido em relevo no Templo Principal e pela metade, feito em pedras escalonadas que saem da terra, na entrada do Templo das Três Janelas. Este símbolo está espalhado por todo o Peru, desde as joias de prata aos encostos de cadeiras de restaurantes. É uma representação das quatro regiões que formavam o Estado inca (Kontisuyo, Chinchaysuyo, Qollasuyo e Antisuyo), mas os missionários espalharam que se tratava de uma Cruz Andina e o nome pegou.

Na Pedra do Sol, que tem várias denominações (Intiwatana, Relógio Solar, Observatório Astronômico e Pedra de Energia), ao colocar a mão aberta para sentir a vibração que ela emana, percebi que havia um cantinho quebrado. Depois, li no livro “Machupicchu em La historia de los inkas” (Cusco, 2007), do escritor inca Cosme Gutiérrez, que o vértice superior da Pedra do Sol foi quebrado no ano 2000 por uma grua, durante a filmagem de um comercial de cerveja. O curioso é que esta fatalidade desencadeou uma indignação popular, que se somou aos escândalos do então governo de Alberto Fujimori, que logo em seguida foi cassado. Fujimori estava completando dez anos de descasos administrativos, com golpes de estado e privatização de tudo quando deu para privatizar. O famigerado queria, inclusive, privatizar Machu Picchu. Felizmente está preso.

Descaso por descaso, Gutiérrez denuncia em seu livro que os objetos arqueológicos encontrados pelo explorador estadunidense Hiram Bingham nas expedições de 1911, 1912 e 1915 foram levados para os Estados Unidos, na qualidade de empréstimo para “estudos científicos” na Universidade de Yale e nunca foram devolvidos. Destino fatídico foi reservado também às coleções correspondentes à história natural, que foram recolhidas nas mesmas expedições e ainda hoje estão no Instituto Smithsonian de Washington. Em 1978, no governo do general Francisco Morales Bermúdez, o obelisco de pedra da praça principal de Machu Picchu foi arrancado para que os reis da Espanha visitassem o local de helicóptero. Na movimentação o monólito se partiu e ficou por isso mesmo.

Esse histórico de maus-tratos ao que a cultura inca tem de mais sagrado, como Machu Picchu, tem alimentado pelas terras andinas a ideia de que um dia o Inca vai voltar. Não como um retorno ao passado, mas como algo que seja capaz de recuperar o equilíbrio da cultura com a natureza e que possa fazer valer os princípios incaicos. Ser franco (ama llulla), ser honrado (ama suwa) e ser trabalhador (ama qella) está na base do ideário perdido com a desaparição do Estado Tawantinsuyo. O próprio Cosme Gutiérrez explicita sua expectativa de que a ignorância será vencida, a pobreza superada e a corrupção varrida, para que as populações andinas retomem o verdadeiro sentido de suas vidas, dentro do mais estrito respeito à natureza e ao criador (Wiraqocha).

A palavra Inca quer dizer governante, guia, modelo. O inca era a pessoa que alcançava a sabedoria, que tinha a espiritualidade elevada, um corpo fisicamente forte e que era capaz de falar com Deus.