Diálogo para a multipolaridade
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno 3, página 3

Quinta-feira, 13 de Agosto de 2009 – Fortaleza, Ceará, Brasil

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A diplomacia do Estado de Israel tem pressionado o Brasil a tomar partido nas questões do Oriente Médio, especialmente com relação ao seu rival Irã. É natural e legítimo que faça isso, assim como é natural e legítimo que o Brasil não aceite fazer esse tipo de escolha, simplesmente porque a proposta não se coaduna com o nosso amálgama cultural. Há brasileiros descendentes de israelenses e de iranianos e aqui, pela nossa vocação para o diálogo, ambos convivem em um padrão de relacionamento caracterizado pela pluralidade.

No mundo da multipolaridade, que vem sendo desenhado na geopolítica internacional, uma das principais contribuições que o Brasil pode dar é exatamente na superação das relações segregadoras em favor do multilateralismo na governança global. Quado o Brasil almeja um assento no Conselho de Segurança da ONU é para efetivamente contribuir positivamente para a cooperação entre governos e povos nas questões internacionais e não para ser servil.

O nosso jeito de trabalhar pela paz regional e mundial tem um diferencial dialógico que precisa ser melhor aproveitado pela comunidade internacional. Nossa lealdade é com os princípios do entendimento e isso nos orgulha e nos impulsiona a querer ser respeitados por sermos assim. Não é tão fácil assumir esse tipo de posição em um mundo em acelerado estágio de esgotamento de modelo civilizatório. As velhas potências têm dificuldade de encarar as transformações e agem recorrendo a desgastadas fórmulas de dominação.

Tomando como exemplo a situação política na América Latina, os sinais de retrocesso na ação dos Estados Unidos vêm aparecendo em movimentações como a reativação da quarta frota da marinha, que no ano passado rondou o continente na tentativa de intimidar as forças nacionais de segurança, como o recente golpe em Honduras e agora, com a instalação de bases militares estadunidenses em território colombiano, sob a alegativa de combate à guerrilha e ao narcotráfico.

O enunciado de boas intenções é o que historicamente existe de mais comum no discursos dos impérios, na busca do alongamento de poder em áreas de interesse estratégico. Foi assim quando os portugueses decidiram que a maneira mais barata de colonizar era promovendo “benfeitorias”, quando os britânicos ofereceram o liberalismo como salvação econômica para problemas sociais, e quando os estadunidenses patrocinaram sangrentas ditaduras no continente americano em nome das alianças pelo progresso.

Quando o chanceler brasileiro Celso Amorim solicita ao presidente da Colômbia, Álvaro Uribe, que explique na Unasul as verdadeiras razões da abertura de espaço para a instalação de frentes do exército dos USA na América do Sul, uma delas, a de Apiay, a apenas 400 quilômetros da fronteira com o Brasil, está mais para um reforço à nossa capacidade de entendimento regional do que uma simples manifestação de desconfiança com relação à suposta manipulação do governo colombiano para desestabilizar a organização política no continente, com o fomento a uma dispensável e indesejada guerra tropical.

O principal motivo da criação, no ano passado, da União das Nações Sul-americanas, Unasul, é exatamente estabelecer condições de diálogo entre os países da América do Sul, por meio da integração social, cultural, política e econômica. A existência desse organismo internacional dispensa interferências externas como a que está em curso para a viabilização de ocupação militar na amazônia colombiana. Se os Estados Unidos querem mesmo ajudar na luta contra o narcotráfico, que trabalhe para inibir o consumo em seu território, que é o maior mercado de drogas do mundo.

Com esse tipo de intromissão típica do tempo da Guerra Fria, quando o mundo era dividido pela tensão entre os Estados Unidos e a ex-URSS, a Casa Branca demonstra que não está sabendo lidar com a realidade planetária multipolar e, com isso, acaba desgastando a imagem do presidente Barack Obama, tão bem construída como uma nova possibilidade de relacionamento internacional, diante de desafios como o respeito às diferentes culturas, o combate ao crime organizado, o terrorismo, o tráfico de pessoas, a explosão demográfica e o esgotamento dos recursos ambientais.

A posição do Brasil no caso da investida desrespeitosa dos Estados Unidos na América do Sul não é diferente da posicão brasileira com relação aos conflitos no Oriente Médio, em termos de busca de solução pelo entendimento e pela construção agregadora. O presidente Lula ouve e considera com a mesma atenção as vozes dos países centrais e dos países marginalizados e esse é um papel relevante que poucos países têm o privilégio de assumir no desenvolvimento de uma cultura da complementaridade, inspirada nas relações multilaterias, indispensáveis à governança no mundo multipolar.

Sei que pode parecer um tanto pretensiosa, essa minha interpretação do que pode o Brasil nos tempos atuais, mas é necessário colocar um pouco da ingenuidade do idealismo no jogo bruto das ideologias. O desrespeito por parte dos países que se consideram superiores na escala civilizacional continua algo inacreditável. Basta lembrar que no mês passado foram descobertos dezenas de contêineres no porto do Rio Grande do Sul, cheios de lixo doméstico, resíduos tóxicos, lixo hospitalar e outros materiais altamente danosos à saúde e ao meio ambiente, enviados camufladamente pela Inglaterra.

Coisas desse tipo demonstram que não há qualquer escrúpulo por parte desses países com relação às regiões do planeta que aprenderam a pilhar, a espoliar e a dominar. Por isso eles jogam o lixo no “lixo”. Diante dessa triste realidade, a pior resposta que poderíamos dar seria a de nos tornarmos odientos. É isso que eles esperam. Eles são líderes mundiais no mercado de armas e querem a guerra para lucrar com o conflito em si e com os seus efeitos. Mas o Brasil não está entrando nessa. Felizmente a excelente diplomacia brasileira tem demonstrado que tem como missão a luta pelo estabelecimento da paz, pelo diálogo regional e global, pela sinceridade do desenvolvimento com visão de futuro.

Pena que a compreensão da importância do Brasil na mudança do paradigma nas relações internacionais seja tão pouco debatida no País. Parte significativa da grande imprensa brasileira tem prestado um desserviço nesse sentido. Em sua ânsia de fragilizar o governo Lula que, a exemplo de Nelson Mandela, caminha para receber o Prêmio Nobel da Paz, a elite servil brasileira superdimensiona aspectos irrelevantes da presença brasileira em favor das mudanças positivas que vêm ocorrendo no mundo, tanto pelos avanços internos de valorização da dignidade humana, quanto na contribuição efetiva para a consolidação da multipolaridade.

Ilustração emblemática da pieguice que confunde a importância do Brasil na conjuntura internacional pode ser vista na primeira página da Folha de São Paulo do dia 10/7/2009: o fato abordado foi a reunião de Áquila, na Itália, preparatória para a atuação direta do Brasil na relação com a Alemanha, Canadá, Estados Unidos, França, Itália, Japão e Reino Unido (G7), ocasião em que o presidente Lula entrega a camisa da seleção brasileira de futebol aos participantes. Sob a chamada “Queima de estoque”, o jornal paulista destaca no alto de sua capa, com foto de Lula e Obama, que a camisa ofertada pelo presidente do Brasil tinha sido “usada pela seleção até 2007 e assinada por atletas não convocados por Dunga”. E a notícia principal saiu pelo ralo.