Nove meses depois da posse de Lula em seu primeiro mandato como Presidente da República escrevi neste Vida & Arte (30/09/2003) o artigo “A democracia empírica”, no qual manifesto a minha admiração de naquele momento ver o Brasil arriscando evoluir politicamente, tendo como base uma espécie de pedagogia dos contrastes entre a abundância e a escassez, que, pela potência de seus múltiplos espíritos miscigenados, teria desenvolvido uma sensibilidade democrática pela periferia do pensamento da política dominante.

A compreensão de que ao longo dos séculos a educação brasileira não nos ofereceu as condições adequadas para termos uma cabeça racionalmente democrática – o que nos leva a ter pouca paciência para a geração de consensos –, nunca tirou, no entanto, a minha crença de que depois de tantas lutas e conquistas nos prepararíamos para enfrentar os determinismos teológicos, etnocêntricos, bélicos e econômicos instalados no país.

Passados 19 anos daquela reflexão inspirada na convicção que sempre tive de que saber conviver é uma vocação emanada dos sentimentos profundos da cultura brasileira, apurados os resultados da votação de primeiro turno das eleições do domingo passado (2), o equilíbrio de votos conferidos ao ex-presidente Lula (48,4%) e ao atual presidente Bolsonaro (43,2%) revela o quanto o realismo político está vencedor no Brasil.

Discute-se pouco a profundidade do que se passa na vida política brasileira. O grande aprendizado das últimas décadas parece ter recaído em memes e xingamentos mútuos. Isso enquanto o comportamento da maioria das lideranças brasileiras reduz-se a uma política de poder. Sem instrumentos para perceber que a política deve estar acima de qualquer político, a sociedade desiludida aceitou a debilitação democrática.

Cartaz com cenas do processo de devastação das riquezas brasileiras na visão do cartunista mineiro Henfil (1944 – 1988), publicado originalmente nas páginas 14 e 15 da edição nº 716, do jornal O Pasquim (de 17 a 23 de março de 1983). Este cartaz fez tanto sucesso que passou a ser reproduzido em serigrafia e vendido aos leitores do Pasquim pelos correios, com anúncio na página 16 da edição nº 723 (de 5 a 11 de maio de 1983). Link para acesso à edição digital na Biblioteca Nacional AQUI

A política precisa ser realista, mas também idealista, para resultar em distribuição mais equitativa de riqueza, de conhecimento e de poder político. O conceito de democracia é polissêmico, tanto que um governo democrático não é incondicionalmente um governo de maioria numérica; porém, uma governança democrática deve estar constantemente sinalizando a direção da busca de interesses comuns entre os diferentes interesses e ideais.

Diante do estímulo a divisões sociais e culturais que se traduzem em ganhos políticos de devoção, mas que enfraquecem a política e fortalecem os vícios plutocráticos, quem perde é a cidadania. As evidências dessa prática estão no cotidiano de uma sociedade altamente conflituosa de um país dominado pela vontade despótica de políticos que, em vez de se adaptarem à dinâmica democrática, preferem dar um jeito de adaptar a democracia aos seus hábitos desviantes.

A democracia empírica, instintiva e emocional é campo fértil para lideranças populistas, ao passo que se faz necessário um tanto de impessoalidade da democracia racionalizada para o estabelecimento de um processo democrático satisfatório. O Brasil está longe disso. De todo modo, no dia 30 deste mês as urnas dirão pelo menos se nos aproximaremos ou nos afastaremos dos caminhos democráticos.

A política é assim, vai pondo na balança da realidade e dos interesses os pesos e contrapesos sociais. O segundo turno é uma pausa para a tomada de consciência do que está se passando, e não uma oportunidade de começar de novo. O que está posto, está posto; resta esperar que cada eleitora e cada eleitor se valha do espírito democrático para, por convicção ou consentimento, exercer a soberania popular na definição dos destinos do Brasil.